Acredita-se amplamente que a sociedade tecnológica está condenada à
administração autoritária, ao trabalho irracional, e ao consumo igualmente
irracional. As críticas sociais afirmam que a racionalidade técnica e os
valores humanos competem pela alma do homem moderno. Este livro desafia tais
clichês concebendo novamente a relação da tecnologia, racionalidade e
democracia. A minha tese é a possibilidade de uma reforma verdadeiramente
radical da sociedade industrial.
Eu argumento que a degradação do trabalho, da educação e do ambiente
está enraizada não na tecnologia per se, mas em valores antidemocráticos que
governam o desenvolvimento tecnológico. As reformas que ignoram este fato
fracassarão, incluindo noções tão populares como um estilo de vida simplificado
ou uma renovação espiritual. Por mais desejáveis que estes objetivos possam
ser, nenhum progresso pode acontecer em uma sociedade que sacrifica milhões de
indivíduos pela produção e desapodera seus membros em todos os aspectos da vida
social, do prazer à educação, do cuidado médico ao planejamento urbano.
Uma sociedade boa deveria aumentar a liberdade pessoal de seus membros
ao mesmo tempo em que os habilita para participar efetivamente em um crescente
número de atividades públicas. Num nível mais elevado, a vida pública envolve
escolhas sobre o que significa ser humano. Hoje estas escolhas são
crescentemente mediadas pelas decisões técnicas. O que os seres humanos são
e o que eles serão é decidido na configuração de nossas ferramentas tanto
quanto das ações dos estadistas e dos movimentos políticos. O design da
tecnologia é, portanto, uma decisão ontológica carregada de conseqüências
políticas. A exclusão de uma ampla maioria da participação nesta decisão é
profundamente antidemocrática.
Uma mudança fundamental exige uma transformação democrática da
tecnologia. Historicamente, tal transformação tem sido chamada de “socialismo”,
mas desde a Revolução Russa este termo tem descrito uma versão particularmente
antidemocrática de uma sociedade muito parecida com a nossa sociedade em
aspectos essenciais como a organização da educação, do trabalho e da mídia. As
diferenças, embora significativas, mal constituíram a base de um modelo de
civilização divergente. A recente queda desses regimes comunistas e sua
ortodoxia marxista criam uma oportunidade de renovar o interesse na teoria e na
política democrática socialista. Não obstante esta oportunidade possa ser
perdida por aqueles que, indiferentemente de sua avaliação do comunismo,
interpretaram sua resistência obstinada ao capitalismo como o símbolo maior de
um futuro sem limites. Hoje, como esta resistência desfalece, as décadas
“pós-modernas” dos anos de 1980 e 1990 alcançam um clímax apropriado para o
“fim” milenar da história.
O fim da história: a crítica radical das sociedades modernas é mera
especulação; o desenvolvimento progressivo é um mito narrativo; alienação é um
conceito literário fora de moda. A salvação está por ser encontrada na ironia,
não na revolução; a política da moda, mesmo na esquerda, é a privatização, não
a auto-gestão.
Esta disposição é moldada pelo consenso que liga muito da esquerda com
a sociedade estabelecida que festeja o avanço tecnológico. De fato, a
tecnologia se tornou tão difundida que o consenso deixa poucas coisas práticas
para se discordar. A luta por questões de direitos humanos um pouco
emocionalmente carregadas, tais como o aborto, disfarça a insignificância do
debate público, a falta de perspectiva história e de alternativas utópicas.
Parece haver espaço apenas para conserto marginal, com um número sempre menor
de problemas não conectados à técnica inextricavelmente. Este resultado foi
antecipado mais de uma geração atrás por Karl Mannheim:
A eliminação completa de elementos da realidade transcendente de nosso
mundo... ocasionaria um estado estático em que o próprio homem se torna não
mais do que uma coisa... Deste modo, depois de um desenvolvimento tortuoso
prolongado, mas heróico, no estágio mais alto da consciência, quando a história
deixa de ser um destino obscuro, e se torna mais e mais uma criação do próprio
homem, com o abandono das utopias, o homem perderia seu propósito para moldar a
história e também sua capacidade de entendê-la. (Mannheim, 1936: 262)
Nos termos de Mannheim, o problema que nós enfrentamos hoje é como
manteremos a fé na possibilidade histórica sem esperanças messiânicas. Uma
reflexão sóbria sobre o futuro pode encontrar alguma coisa mais do que um
reflexo do presente? Eu acredito que sim e tenho feito o meu melhor para
estimular uma compreensão das escolhas que são colocadas diante de nós através
de uma crítica da promessa amplamente cumprida da tecnologia. Para este fim eu
reabro o debate sobre o socialismo em confronto com as várias objeções técnicas
e práticas, e sugiro uma alternativa coerente que preservaria e avançaria com a
nossa herança democrática ameaçada.
Esta herança está hoje comprometida por causa da lacuna crescente
entre as exigências intelectuais dos cidadãos e o trabalho. A oposição fria do
mercado e da burocracia bloqueia o caminho para uma solução. Nós podemos
conceber uma sociedade industrial baseada na participação democrática em que a
liberdade individual não seja a liberdade de mercado, e em que a
responsabilidade social não seja exercida através de uma regulamentação
coerciva? Eu vou argumentar que a política democrática da tecnologia oferece
uma alternativa que poderia superar a relação destrutiva da industrialização
moderna com a natureza, tanto no que diz respeito aos seres humanos quanto ao
meio-ambiente.
Teorias Instrumental e
Substantiva da Tecnologia
Nas páginas que se seguem eu apresento esta posição como uma
alternativa a algumas teorias estabelecidas da tecnologia. Elas podem ser
divididas em dois tipos principais: teoria instrumental, a visão
dominante dos governos modernos e da política científica em que eles confiam, e
a teoria substantiva, tal como a de Jacques Ellul (Borgmann, 1984: 9). A
primeira trata a tecnologia como subserviente a valores estabelecidos em outras
esferas sociais (e.g., política ou cultura), enquanto a segunda atribui uma
força cultural autônoma à tecnologia que rejeita todos os valores tradicionais
ou concorrentes. A teoria substantiva afirma que aquilo que o próprio emprego
da tecnologia faz para a humanidade e para a natureza tem mais conseqüências
que seus objetivos ostensivos. Eu vou revisar estas teorias rapidamente antes
de introduzir uma teoria crítica da tecnologia que, eu acredito,
preserva o melhor de ambas ao mesmo tempo em que abre um panorama de mudança
fundamental.
Teoria Instrumental
A Teoria Instrumental oferece a visão mais amplamente aceita de
tecnologia. Ela é baseada na idéia senso comum de que as tecnologias são
“ferramentas” prontas para servir aos propósitos de seus usuários. A tecnologia
é considerada “neutra”, sem um conteúdo valorativo próprio. Mas o que realmente
significa a “neutralidade” da tecnologia? O conceito normalmente envolve pelo
menos quatro pontos:
1. A neutralidade da tecnologia é meramente exemplo especial da
neutralidade dos meios instrumentais, que são apenas eventualmente relacionados
aos valores substantivos que eles servem. A tecnologia, como pura
instrumentalidade, é indiferente a variedade de fins a que ela pode ser
empregada. Esta concepção de neutralidade é familiar e evidente por si mesma.
2. A tecnologia também parece ser indiferente em relação à política,
pelo menos no mundo moderno, e especialmente em relação ao capitalismo e ao
socialismo. Um martelo é um martelo, uma turbina é uma turbina, e tais
ferramentas são úteis em qualquer contexto social. Em relação a isto, a
tecnologia parece ser muito diferente de instituições legais ou religiosas, que
não podem ser prontamente transferidas a um novo contexto social porque elas
são muito interligadas a outros aspectos das sociedades em que elas se
originaram. A transferência de tecnologia, pelo contrário, parece ser impedida
apenas por seus custos.
3. A neutralidade socio-política da tecnologia é normalmente atribuída
a seu caráter “racional”,à universalidade da verdade que ela incorpora. As
proposições causais verificáveis em que ela é baseada não são nem socialmente
nem politicamente relativas, como as idéias científicas, mantêm seus status
cognitivo em todo contexto social concebível. Conseqüentemente, pode-se esperar
que as fábricas de uma sociedade funcionem do mesmo modo em outra sociedade.
4. A tecnologia é neutra porque permanece essencialmente sob as mesmas
normas de eficiência em todo e qualquer contexto. Sua universalidade também
significa que os mesmos padrões de medida podem ser aplicados a ela em
diferentes cenários. Por exemplo, rotineiramente se diz que a tecnologia
aumenta a produtividade do trabalho em diferentes países, diferentes épocas e
diferentes civilizações.
Esta abordagem instrumentalista coloca as “negociações” no centro da
discussão. “Você não pode otimizar duas variáveis”, um truísmo da economia,
parece se aplicar à tecnologia, onde a eficiência é considerada como uma das
variáveis. Há um preço para a conquista de outras variáveis, tais como variáveis
ambientais, éticas, ou objetivos religiosos, e o preço deve ser pago através da
redução da eficiência. Deste modo, a esfera técnica pode ser limitada por
valores não-técnicos, mas não transformada por eles.[1]
O entendimento instrumentalista da tecnologia é especialmente
proeminente nas ciências sociais. Parece explicar as tensões entre tradição,
ideologia, e a eficiência que surgem da mudança socio-técnica. A teoria da
modernização, por exemplo, estuda como as elites usam a tecnologia para
promover mudança social no curso da industrialização. E como as políticas
públicas analisam as preocupações com os custos e as conseqüências da automação
e da poluição ambiental. O instrumentalismo provê a estrutura para tal
pesquisa.
Teoria Substantiva
Apesar do senso comum apelar para a teoria instrumental, uma visão minoritária
nega a neutralidade da tecnologia. A teoria substantiva, melhor conhecida pelos
escritos de Jaques Ellul e Martin Heidegger, argumenta que a tecnologia
constitui um novo sistema cultural que reestrutura todo o mundo social como um
objeto de controle.[2]
Este sistema é caracterizado por uma dinâmica expansiva que ultimamente alcança
todos os enclaves pré-tecnológicos e molda toda a vida social. A
instrumentalização total é, não obstante, um destino do qual não há maneira de
escapar que não seja retrocedendo. Apenas um retorno à tradição ou a
simplicidade oferece uma alternativa à força incontrolável do progresso.
Algo desta visão está na concepção pessimista de Max Weber de uma
“gaiola de ferro” da racionalização, embora ele não tenha conectado
especificamente esta projeção à tecnologia ou sugerido uma solução. Igualmente
pessimista, Ellul faz uma ligação explícita, argumentando que o “fenômeno
técnico” tem se tornado a característica que define todas as sociedades
modernas indiferente das ideologias políticas. A “técnica”, ele afirma, “se
tornou autônoma” (Ellul, 1964: 14). Heidegger concorda que a tecnologia nos
afeta implacavelmente. Nós estamos envolvidos, ele afirma, na transformação de
todo o mundo, inclusive de nós mesmos, em “reservas permanentes”,
matérias-primas a serem mobilizadas no processo técnico (Heidegger, 1977a: 17).
Heidegger afirma que a reestruturação técnica das sociedades modernas está
enraizada em um desejo niilista de poder, uma degradação do homem e do ser ao
nível de meros objetos.
Esta visão apocalíptica é muitas vezes posta de lado por atribuir
poderes absurdos, quase mágicos, à tecnologia. Na verdade, suas afirmações
básicas são todas bastante críveis. A substituição do jantar de família
tradicional por “fast-food” pode servir como uma humilde ilustração das
conseqüências culturais não propositadas da tecnologia. A unidade da família,
ritualmente reafirmada a cada noite, não tem mais um local comparável de
expressão. Ninguém afirma que o surgimento de fast foods realmente causou
o declínio da família tradicional, mas a correlação significa a emergência de
um novo modo de vida baseado na tecnologia.
Um instrumentalista poderia responder que fast foods bem
preparadas fornecem uma refeição completa sem complicações sociais
desnecessárias. No fundo, se alimentar é meramente uma questão de ingerir
calorias, enquanto todos os aspectos ritualísticos do consumo de comida são
secundários no que diz respeito ao processo biológico. Esta resposta não vê as
implicações culturais da tecnologia. Ao adotar um ponto de vista estritamente
funcional, determinamos que comer é uma operação técnica que pode ser executada
mais ou menos eficientemente, e que em si mesmo é uma escolha valorativa.
Este exemplo pode representar muitos outros em que a transição da
tradição para a modernidade é julgada ser um progresso por um padrão de
eficiência intrínseca à modernidade e alheio à tradição. A teoria substantiva
da tecnologia tenta nos conscientizar da arbitrariedade desta construção, ou
melhor, de seu caráter cultural. A questão não é se as máquinas têm
“substituído”, mas se ao escolher usá-las nós nos comprometemos de maneira
inconsciente. A tecnologia não é simplesmente um meio, mas se tornou um
ambiente e um modo de vida. Este é o seu impacto “substantivo” (Borgmann, 1984:
204 e seguintes).
Parece que a teoria substantiva dificilmente poderia estar mais
distante da visão instrumentalista da tecnologia enquanto soma de ferramentas
neutras. Porém, eu vou mostrar na próxima seção que estas duas teorias
compartilham muitas características que as distinguem da terceira abordagem, a
teoria crítica da tecnologia.
Teoria Limitada e Ilimitada
Apesar de suas diferenças, as teorias instrumental e substantiva
compartilham uma atitude de “pegar ou largar” para com a tecnologia. De um
lado, se a tecnologia é uma mera instrumentalidade, indiferente aos valores,
então seu design não está em questão no debate político, apenas a extensão e a
eficiência de sua aplicação. De outro lado, se a tecnologia é o veículo de uma
cultura de dominação, então nós estamos condenados a seguir seus avanços em
direção a distopia ou regressar a um modo mais primitivo de vida. Em nenhum dos
caso nós podemos mudá-la: em ambas teorias, a tecnologia é o destino. A
razão, nesta forma tecnológica, está além da intervenção ou reparo humano.[3]
É por isto que a maioria das propostas para uma reforma da tecnologia
procuram apenas colocar um limite ao redor dela, não transformá-la. Nos contam,
por exemplo, que o dano que nós causamos a natureza pode ser reduzido através
do retorno a um modo mais natural de vida, sem carros, compactadores de lixo e
energia nuclear. A medicina de alta tecnologia empregada no nascimento de
crianças e nas pessoas que agoniam é criticada por ir “muito longe”, em zonas
onde a natureza deveria seguir seu próprio curso. As tecnologias reprodutivas
estão sob constante ataque nos terrenos religiosos. A engenharia genética é a última aventura
biológica. Em todos estes casos a crítica nos obriga a rejeitar certas tecnologias,
e depois nos pede para aceitar o preço de preservar modos tradicionais e
naturais. Esta pauta tem dado origem tanto a soluções morais quanto políticas
para os problemas da tecnologia moderna.
Fronteiras Morais
Enquanto conservadores políticos procuram revigorar instituições como
a família e as influências tradicionais, os conservadores culturais se
focalizam em valores espirituais. Ellul e Heidegger, por exemplo, condenam a
redução de nossa existência humana, ética e política a um mero instrumento para
alcançar riqueza e poder, e clamam pela restauração do sagrado. Os
progressistas se preocupam com a subversão das instituições democráticas pela
tecnologia. Jürgen Habermas argumenta que a vida pública das sociedades
democráticas pressupõe um compromisso dos cidadãos de se ajustar ao argumento
racional. Na medida em que nós tornamos técnica a esfera pública através da
transferência de suas funções aos especialistas, nós destruímos o próprio
significado de democracia: “O poder compensador da reflexão não pode ser
suplantado pela extensão do conhecimento tecnicamente explorável”(Habermas,
1970: 61).
Albert Borgmann oferece uma versão sofisticada da idéia de um retorno
à simplicidade. Ele solicita uma economia de “dois setores” em que um setor
dilatador que exige habilidades absorverá o período de inatividade no emprego
de um centro econômico crescentemente automatizado. Há mérito na idéia de
privilegiar o crescimento das habilidades sob a industrialização. A necessidade
é óbvia em domínios como a música, onde o poder da mídia de focalizar toda a
atenção em umas poucas estrelas tem conseqüências devastadoras para a
criatividade e diminui o valor de muitos talentos. Desenvolvimentos recentes na
Internet começam a desafiar o sistema e podem, de fato, abrir a música a uma
participação mais ampla.
Em princípio, Borgamann poderia acomodar tal simbiose de habilidades e
avanço tecnológico progressivo; na verdade ele apóia uma posição similar em
tais artigos de consumo como botas de tracking. Mas quando diz respeito à
produção, ele cai numa aceitação acrítica do paradigma tecnológico dominante,
que, ele afirma, “é perfeito a seu modo” (Borgmann, 1984: 220).[4]
Mas a tecnologia industrial moderna é realmente “perfeita” em concepção e
design? Não é, em vez disso, um desastre humano e ambiental? E como alguém pode
confinar este desastre à sua própria esfera, como todos estes teóricos exigem,
quando os problemas que a tecnologia cria extravasam todas as fronteiras e
modelam toda a estrutura da vida social?
Permitam-me colocar alguma ordem neste monte de objeções. Existem,
pelo menos, quatro razões para duvidar que as soluções morais funcionarão.
1. Eu concordo plenamente com uma visão de progresso técnico que rejeite
seu imperialismo e o considere como apenas uma entre as muitas dimensões da
existência humana. Mas é tão importante conceber a transformação progressiva da
tecnologia quanto definir seus limites. Tendo definido o lugar próprio da
tecnologia, a crítica falha em ver seu potencial e, ao condenar sua forma
atual, rejeita seu possível futuro.
2. Suponhamos que alguém obtenha sucesso ao combinar a limitação do
alcance da tecnologia com um esforço para reformá-la dentro do seu próprio
domínio. O problema é definir que domínio ainda permanece. É
extraordinariamente difícil alcançar um acordo sobre quais atividades deveriam
ser protegidas da mediação técnica: o parto? a família? a política? as
tradições étnicas ou religiosas? O único valor consensual que ficou nas
sociedades modernas é a eficiência, precisamente o valor que nós estamos
tentando limitar para que outros valores possam prosperar.
3. Além disso, ao colocar os valores espirituais em rígida oposição à
tecnologia, nós reconhecemos o que precisa ser defendido, isto é, a
possibilidade de uma civilização tecnicamente racional que realce em vez de
minar estes valores. A crítica moral da tecnologia sempre parece reabrir o
tedioso debate de “princípios” versus “praticabilidade”. Em uma sociedade
moderna isto não é um debate, mas uma confissão de impotência, visto que a
vitória do prático é muito previsível. O que é necessário é uma praticabilidade
alternativa mais de acordo com o princípio. Isto é o que o marxismo tradicional
prometeu, mas falhou em realizar. A questão posta para nós hoje é se nós
podemos fazer melhor.
4. Finalmente, o próprio projeto de limitar a tecnologia parece
suspeito. Se nós escolhemos deixar algo intocável pela tecnologia, este
não é um tipo mais sutil de controle técnico? Eu não domestiquei uma árvore ou
um arbusto selvagem ou, de fato, um pico de uma montanha distante visível do
meu jardim, se eu plantei ao redor dele de modo a ressaltar sua beleza? (Esta é
uma técnica padrão da jardinagem japonesa chamada “cenário emprestado”.) Se eu
repentinamente preciso de significado na minha vida amplamente permeada de
tecnologia, e o consigo retornando às minhas tradições religiosas familiares,
eu não estou usando a religião como um tipo de supertecnologia? Se
estiver, como eu posso acreditar nisso? Como eu posso deixar a esfera técnica
se o próprio ato de limitar uma reserva a instrumentaliza?
Fronteiras Políticas
A solução política ao problema de limitar a tecnologia não é mais
promissora. Esta solução tem sido testada por aqueles países que tentam
preservar valores nativos enquanto se modernizam. Tipicamente, os governantes
argumentam que as falhas da sociedade moderna são o resultado de uma
instrumentalização específica de tecnologia. Eles enxergam o capitalismo
ocidental e sua tecnocultura peculiar como um sistema de “valores” da mesma
ordem que, por exemplo, confucionismo e islamismo. Seu objetivo é construir
esferas regionais econômicas e culturais, resguardadas do mundo do mercado e da
hegemonia cultural ocidental, onde a tecnologia moderna estará a serviço dessas
alternativas (Rybczynski, 1991).
Além dos muitos gestos retóricos nesta direção, tem havido duas
ameaças sérias a hegemonia ocidental. Antes da Segunda Guerra Mundial o Japão
testou o poder da tradição de resistir a modernização, enquanto a União
Soviética tentou submeter a modernização aos objetivos comunistas. A estratégia
nestes casos foi notavelmente parecida apesar das imensas diferenças nacionais
e ideológicas.
No final do século dezenove, o Japão se comprometeu a importar e manufaturar
a tecnologia ocidental em grande escala como um meio de preservar a
independência nacional. Submersos em tecnologia estrangeira, os conservadores
culturais não poderiam deixar de imaginar que tipo de sociedade industrial
teria sido criada pelos inventores japoneses se eles tivessem ficado sozinhos
por mais um século. Por isso o romancista Tanizaki escreve em 1933, “O Oriente
muito possivelmente poderia ter criado um mundo de tecnologia totalmente seu”
(Tanizaki, 1977: 7).
Em qualquer um dos casos, a tecnologia foi transferida de maneira tão
bem sucedida que os japoneses começaram a acreditar que eles estavam destinados
a liderar toda a Ásia, não apenas economicamente e militarmente, mas também
culturalmente. Nos anos de 1940 a luta para “dominar a modernidade (Européia)” (kindai
no chokoku) conquistou o apoio de muitos dos escritores e filósofos
japoneses mais sofisticados. “O problema era encontrar um modo de conceituar
uma modernidade que era produzida no Japão, não no oeste” (Harootunian, 1989:
75).
Mas apesar da séria reflexão, estes intelectuais não chegaram a
nenhuma alternativa concreta, nada que indicasse que uma vitória japonesa
abriria o caminho para uma forma original de sociedade moderna. A derrota
japonesa na Segunda Guerra Mundial marcou o fim do esforço por uma forma
especificamente asiática de cultura moderna, ainda que a idéia seja trazida à
tona periodicamente no Japão para reconsideração. O fracasso da tentativa do
Japão de preservar sua originalidade cultural prenunciou todas as lutas
posteriores para preservar os vestígios da tradição e da etnia frente às
pressões universais da tecnologia.[5]
A experiência soviética assemelha-se a do Japão com exceção de que a
Revolução Russa era orientada para o futuro e não para o passado. Novamente, a
proteção dos valores originais exigiu a aquisição eficaz da tecnologia existente
para alcançar um desenvolvimento econômico rápido. Assim, apesar de certas
implicações substantivistas da teoria marxista dos estágios econômicos, o
regime soviético adotou uma posição instrumentalista típica sobre a tecnologia,
importando e usando-a com se ela fosse um instrumento neutro. Este é o
significado da famosa observação de Lênin que comunismo é “eletrização mais
sovietes”. O controle firme da interação econômica e cultural com o mundo
capitalista era supostamente para abrir um espaço protegido dentro do qual uma
nova cultural nasceria.
Este experimento terminou sem suas ambições heróicas pela trivialidade
da corrupção burocrática, incompetência e irresponsabilidade. Sob o domínio de
Gorbachev, a Rússia deixou de se acreditar capaz de organizar uma sub-região
autônoma na economia mundial, e pediu ao oeste para que se envolvesse
diretamente no desenvolvimento da economia comunista. Nesse contexto, a mídia
ocidental obteve acesso às audiências russas. A perda do controle cultural foi
em breve tão completa que o retorno não era possível. Ao mesmo tempo, os
problemas econômicos acumulavam. Por fim, o regime desmoronou todo junto e com
este a visão comunista, até em sua versão reformada gorbacheviana. A
restauração capitalista apareceu como uma tentação próxima e irresistível às
populações que esperavam dela a prosperidade do oeste. Muitos intelectuais
socialistas esperavam que a transição difícil ao capitalismo liberasse pressões
por uma nova sociedade que inovasse tanto em relação ao modelo capitalista
quanto comunista. Nada deste tipo ocorreu. Ao invés disso, os antigos regimes
comunistas introduziram os mercados de capital e se engajaram em um tipo de
imitação ritualística das características visíveis das sociedades ocidentais.
Este capitalismo de mercadorias e cultura levou a catástrofe à Rússia e às
nações menos preparadas do antigo Pacto de Varsóvia. A desordem resultante
ainda não terminou de nos ensinar que o capitalismo é mais do que mercados e
que depende igualmente do complexo social, cultural, e de pré-condições
políticas.
Mesmo que a democratização na China tenha, sem dúvida, sido atrasada
pelo exemplo aterrorizante da desintegração soviética, é difícil acreditar na
defesa da retaguarda do isolacionismo cultural lá. Algum tipo de transição para
o capitalismo parece provável no contexto da trocas econômicas intensificadas
com o oeste, mais provável talvez do que um restabelecimento do socialismo em
novas formas.
A teoria instrumental da tecnologia não é totalmente refutada por
estas experiências, mesmo que em cada caso os governos tenham sido incapazes de
usar a tecnologia para fins culturais originais. Defensores da visão
instrumental às vezes extraem conforto da conjunção da reforma democrática com
a decisão de ocidentalizar. Os cidadãos ordinários parecem ter refutado as
concessões exigidas para sustentar os valores tradicionais ou os valores
orientados para o futuro que competem com o bem-estar do presente. A conquista
da sociedade pela tecnologia não se deve ao poder oculto do “fenômeno técnico”;
em vez disso, a tecnologia, enquanto um domínio de instrumentos aperfeiçoados
para alcançar o bem-estar, é simplesmente uma alternativa mais poderosa e
persuasiva do que qualquer compromisso ideológico.
Aqui a especificidade da teoria instrumental entra em colapso. Se a
tecnologia é verdadeiramente neutra, ela deveria ser capaz de servir a uma
pluralidade de fins. Mas a associação próxima da democracia com a
ocidentalização cultural parece negar este pluralismo, e, na verdade, confirma
os argumentos da teoria substantiva. Há pouca razão para distinguir as duas
teorias se elas discordam apenas na sua atitude com respeito a um resultado
previsto por ambas.
Um argumento mais interessante separa a abordagem substantiva da
teoria crítica. Ambas podem concordar que os exemplos japonês e soviético
diferem apenas superficialmente da civilização ocidental que eles professaram
transcender. Os teóricos substantivistas vêem isto como evidências de que
nenhuma civilização tecnológica alternativa é possível. Mas a teoria crítica,
com eu a desenvolvo aqui, argumenta, ao contrário, que uma alternativa ainda
pode ser criada com base na participação pública em decisões técnicas, no
controle exercido pelos trabalhadores, e na requalificação da força de
trabalho. Se os experimentos japonês e soviético falharam, é porque eles
rejeitaram esta trilha democrática radical para alguns convergente com o oeste.
De acordo com esta visão, os estados não podem impor alternativas
radicais. Eles tentam instrumentalizar a tecnologia em lugar dos valores
originais que enfraquecem em uma contradição interna. Considerando as
dificuldades do desafio tecnológico, apenas um estado particularmente forte
pode criar uma região culturalmente e economicamente fechada para o
favorecimento dos objetivos culturais originais. Porém um estado forte pode se
sustentar apenas com o emprego da herança técnica autoritária do capitalismo.
Procedendo assim, ele reproduz todas as características principais da
civilização que ele pretende rejeitar: prognosticamente, os meios subvertem os
fins (Fleron, 1977: 471 e seguintes). Este argumento aponta para uma
reconceituação do socialismo fora da estrutura que deve ser paradoxalmente
descrita como utopia geográfica.
Teoria Crítica da Tecnologia
Entre a Resignação e a Utopia
Seja quais forem os méritos de colocar limites morais e políticos na
tecnologia em casos particulares, a história parece mostrar que é impossível
criar uma forma fundamentalmente diferente de civilização moderna usando a
mesma tecnologia que o oeste. Se for assim, então também Heidegger está certo,
e “somente um deus pode nos salvar agora”, ou nós devemos inventar uma política
de transformação tecnológica (Heidegger, 1977b).
A segunda opção caracteriza a teoria crítica da tecnologia. Esta
teoria desenha um caminho difícil entre a resignação e a utopia. Ela analisa as
novas formas de opressão associadas à sociedade moderna e argumenta que elas
estão sujeitas a novos desafios. Mas, tendo renunciado a ilusão de uma mudança
na civilização patrocinada pelo estado, a teoria crítica deve comprometer-se
muito mais diretamente com a questão da tecnologia do que é costumeiro nas
ciências humanas. Ela deve cruzar as barreiras que separam a herança dos
intelectuais radicais do mundo contemporâneo dos especialistas técnicos e
explicar como a tecnologia moderna pode se resignar a se adaptar às
necessidades de uma sociedade mais livre.
Os primeiros passos inseguros nesta direção foram dados pelo marxista
Lukács e a Escola de Frankfurt. Suas teorias de “reificação”, “iluminismo
totalitário”, e “unidimensionalidade” mostram que a conquista da natureza não é
um evento metafísico, mas começa na dominação social. O remédio,
conseqüentemente, não está para ser encontrado numa renovação espiritual, mas
em um avanço democrático. Este avanço envolve uma reconstrução da base
tecnológica das sociedades modernas. Ao argumentar que a libertação da
humanidade e a libertação da natureza estão conectadas, a Escola de Frankfurt
expõe o medo de que o socialismo pudesse simplesmente universalizar o
tecnicismo de Prometeu do capitalismo moderno. Mas com a notável exceção de
Marcuse, estes críticos marxistas da tecnologia pararam antes de realmente
explicar a nova relação com a natureza contida em seu programa, e mesmo que
Marcuse não satisfaça totalmente a expectativa, seu trabalho desperta para uma
concepção concreta de uma “nova tecnologia”.[6]
Não surpreendentemente, dada sua obscuridade, o foco crítico da Escola de
Frankfurt na tecnologia não sobreviveu ao ataque de Habermas, e por isso a
maior parte dos herdeiros da Escola de Frankfurt regressaram à afirmação
conformista da neutralidade da tecnologia (Feenberg, 1999: cap. 8).
Eu acredito que esta foi uma alteração errônea no desenvolvimento da
teoria crítica. É desastroso que uma tradição que tenha começado com uma
crítica das tendências sociais instruída filosoficamente seja agora
freqüentemente deixada de fora do crescente debate público sobre a tecnologia.
Mas ninguém pode simplesmente voltar as formulações de Adorno ou Marcuse como
se a tremenda excitação ao redor do ambientalismo, a tecnologia médica, e a
computação não tivessem mudado nada de forma significativa. Este livro,
portanto, constrói uma nova formulação da teoria crítica da tecnologia para se
dirigir a estes assuntos.
Esta formulação assemelha-se às teorias substantivas ao argumentar que
a natureza tecnológica é mais do que a soma de ferramentas e, de fato,
estrutura o mundo a despeito das intenções dos usuários. Ao escolher nossa
tecnologia nós nos tornamos o que nós somos, o que às vezes molda as nossas
escolhas futuras. O ato de escolher está agora tão embutido de tecnologia que
ele não pode ser entendido como um “uso” livre no sentido pretendido pela
teoria instrumental. Mesmo assim, a teoria crítica nega que a modernidade
esteja exemplificada por nossa cultura consumista, atomista e autoritária. A
escolha da civilização não é decidida pela tecnologia autônoma, ela pode ser
afetada pela ação humana. Não há um único “fenômeno técnico” que possa ser
rejeitado totalmente da maneira de Ellul.
Conseqüentemente, a teoria crítica concorda com o instrumentalismo ao
refutar o fatalismo. Ele não desapareceu face ao triunfo da tecnologia, nem vai
pedir por uma renovação do espírito humano a partir de um domínio além da
sociedade tal como a religião ou a natureza. A luta política, como um estímulo
à inovação cultural e técnica, continua a desempenhar um papel.
Apesar destes pontos em que concordo com o instrumentalismo, a teoria
crítica rejeita a neutralidade da tecnologia e argumenta, em vez disso, que a
“racionalidade tecnológica se tornou racionalidade política” (Marcuse, 1964:
XV-XVI). Os valores de um sistema social específico e os interesses de suas
classes dominantes estão instalados no próprio design dos procedimentos
racionais e das máquinas mesmo antes deles serem designados para fins
específicos. A forma dominante da racionalidade tecnológica não é nem uma
ideologia (uma expressão discursiva dos interesses de classe), nem uma reflexão
neutra das leis naturais. Ao invés disso, fica na intersecção entre a ideologia
e a técnica onde as duas juntas controlam os serem humanos e os recursos de
acordo com o que eu chamarei de “códigos técnicos”. A teoria crítica mostra
como estes códigos sedimentam invisivelmente valores e interesses nas regras e
procedimentos, instrumentos e artefatos que tornam rotineira a busca do poder e
de vantagens por uma hegemonia dominante.
A teoria crítica argumenta que a tecnologia não é uma coisa no sentido
comum do termo, mas um processo “ambivalente” de desenvolvimento suspenso entre
diferentes possibilidades. Esta ambivalência da tecnologia é distinguida da
neutralidade pelo papel que ela atribui a valores sociais no design, e não
meramente o uso, dos sistemas técnicos. Nesta visão, a tecnologia não é um
destino, mas um “parlamento de coisas” dentro do qual as alternativas de civilização
competem.
Um Sistema Multiestável
As civilizações definem um tipo humano. As condições culturais,
sociais, geográficas e econômicas características moldam as civilizações e as
distinguem umas das outras. No passado, as alternativas de civilizações
emergiram dentro de cada modo de produção com diferenças nos papéis de idade,
sexo ou status; diferenças nas funções da religião, na arte ou bem estar; nas
tecnologias disponíveis; e assim por diante. Não havia apenas uma forma
de vida tribal, uma civilização feudal ou uma monarquia absoluta,
mas uma multiplicidade em cada caso. Mas hoje, pela primeira vez, parece haver
apenas uma civilização moderna possível. Isto gradualmente homogeneíza todas as
outras diferenças enquanto oblitera a geografia e subverte todos os valores
tradicionais.
A teoria crítica defende que pode existir pelo menos duas civilizações
modernas diferentes baseadas nos diferentes caminhos do desenvolvimento
técnico. Os pontos de partida de um novo caminho não são para ser buscados em
fantasias especulativas, mas entre elementos marginais do sistema existente. As
tecnologias correspondentes a civilizações diferentes, portanto, coexistem
inquietamente dentro da nossa sociedade. Nós já podemos sentir os riscos
maiores implícitos na escolha técnica entre a produção através linhas de
montagem ou equipes de trabalho, computadores planejados para intensificar o
controle ou expandir a comunicação, cidades construídas de acordo com os
automóveis e o transporte público. A noção instrumentalista de “uso” não se
aplica a este nível porque a busca sólida de um outro caminho técnico define o
usuário como um ou outro tipo humano, membro de uma ou outra civilização.
Isto explica o fracasso de tentativas de instrumentalizar a tecnologia
em nome da tradição e da ideologia. Se uma civilização tecnológica diferente
não pode emergir da ética, ideologia ou etnia, ela deve ser baseada na
distinção imanente da própria esfera técnica. Como Don Ohde coloca, “qualquer gestalt
mais ampla transformada em sensibilidades terá que ocorrer a partir de dentro
das culturas tecnológicas” (Idhe, 1990: 200). A mais significativa de tais
distinções é o poder diferencial entre aqueles que comandam aqueles que
obedecem na operação dos sistemas. Este poder diferencial, organizado através
de uma variedade de instituições, é uma das bases da civilização existente
tanto na sua forma capitalista quanto comunista.
A tecnologia é um fenômeno de dois lados: de um lado, há o operador;
de outro, objeto. Quando tanto o operador quanto o objeto são seres humanos, a
ação técnica é um exercício de poder. Quando, além disso, a sociedade é
organizada ao redor da tecnologia, o poder tecnológico é a principal forma de
poder na sociedade. A unidimensionalidade resulta da dificuldade de criticar esta
forma de poder em termos de conceitos tradicionais de justiça, liberdade,
igualdade e assim por diante. Mas o exercício do poder técnico evoca
resistências de um novo tipo imanente ao sistema técnico unidimensional. Estas
resistências desafiam implicitamente a hierarquia baseada na técnica. Visto que
o local do controle técnico influencia o desenvolvimento tecnológico, novas
formas de controle a partir de baixo poderiam colocar o desenvolvimento em um
caminho original.
Os conflitos especificamente relevantes à transformação das sociedades
tecnologicamente avançadas, portanto, opõe atores leigos ao poder
institucionalizado daqueles que controlam a mediação técnica da vida moderna.
Para minha avaliação destes conflitos, eu confio fortemente no trabalho de
Michel de Certeau (de Certeau, 1980). De Certeau oferece uma interpretação da
teoria de Foucault do poder que ajuda a esclarecer a natureza de dois lados da
tecnologia. Ele faz a distinção entre as estratégias de grupos tais como
gerente e administradores de estados com uma base institucional a partir da
qual exercitam o poder, e as operações táticas daqueles que são sujeitos a este
poder e que, faltando uma base para atuar continuamente e legitimamente,
manobram e improvisam resistências micro-políticas.
O ponto de vista estratégico ocupado pela administração privilegia as
considerações de controle e eficiência e olha para o mundo em termos de
produção, precisamente o que a teoria substantiva critica na tecnologia. As
sociedades modernas são caracterizadas pela sempre crescente efetividade do
controle estratégico. Eu analiso esta tendência nos termos do conceito de
“autonomia operacional”, a liberdade da administração de tomar decisões
independentes sobre como prosseguir com as atividades da organização que
supervisiona apesar das visões ou interesses dos atores subordinados e da
comunidade.
O ponto de vista tático daquele que é administrado é muito mais rico
do que esta orientação estratégica. É a vida e o mundo de todo o dia de uma
sociedade moderna em que os instrumentos formam um ambiente quase total. Os
indivíduos identificam e procuram significados neste ambiente. O poder está
apenas tangencialmente em risco na maior parte das interações, e quando ele se
impõe, a resistência é temporária e limitada em escopo. Mas na medida em que as
massas de indivíduos são inseridas dentro de sistemas técnicos, as resistências
podem pesar no design e na configuração futura dos sistemas e seus produtos.
Esta interpretação baseada nos dois lados da tecnologia começa uma teoria
de política técnica mais apta a dar uma luz ao mundo contemporâneo do que o
substantivismo, que adota inconscientemente um ponto de vista estratégico sobre
a tecnologia e ignora o seu papel de vida-mundo. Isto é o que o leva a
julgamentos tão negativos e o que explica a esperança de Heidegger de que o
Nazismo pudesse, por transformar misteriosamente nossa relação com a tecnologia
a partir de cima, cumprir seu programa. Ao invés disso, nós precisamos uma
transformação democrática a partir de baixo.
Uma alteração no lugar do controle técnico é possível? Existem
objeções tanto culturais quanto técnicas a esta proposição. A democratização
radical pressupõe o desejo por uma responsabilidade e um poder maior, mas os
cidadãos das sociedades industriais de hoje parecem estar mais ansiosos para
“escapar da liberdade” do que aumentar a sua quantidade. Eu não vou argumentar
com esta visão, mas é simplesmente dogmático rejeitar a possibilidade de uma
reversão das tendências atuais. As coisas eram diferentes nos recentes anos de
1960 e podem mudar no futuro quando o escopo completo da crise ambiental de
todo mundo for entendido.[7]
A emergência de uma cultura de responsabilidade alteraria as
instituições não-econômicas e os papéis do gênero tanto quanto o lugar do
trabalho. Eu não argumento que o último é a instância determinante de
uma mudança de civilização geral. Mas em uma sociedade industrial, onde tantas
escolhas sociais e políticas são feitas pelos administradores econômicos, a
democratização do trabalho é indispensável para um modo mais participativo de
vida. E é precisamente no domínio do trabalho que a democratização formula seus
problemas mais difíceis, ou pelo menos isto é amplamente acreditado.
A civilização moderna é julgada inerentemente incompatível com a
participação de massa. Certamente, esta é a conseqüência do progresso na esfera
da produção através da implacável substituição da energia muscular, das
habilidades manuais, e, finalmente, da inteligência pela tecnologia avançada.
Reduzidos a robôs passivos no trabalho, os membros da sociedade industrial provavelmente
não vão obter as qualificações educacionais e de caráter para uma cidadania
ativa.
Estas objeções levam a um problema mais profundo nas teorias usuais da
democracia social, que são primariamente preocupadas com a defesa ou, no melhor
dos casos, com a extensão do estado de bem-estar social. Estas teorias
seguidamente apelam para um conceito negativo de liberdade em oposição às
projeções utópicas, que eles rejeitam como impraticáveis ou até totalitárias.
Mas na medida em que a teoria social meramente abre a questão da boa vida para
debate sem propor sua própria concepção substantiva, ela evita a utopia à custa
de tornar as questões da civilização triviais e evasivas, uma política
esquerdista deve confrontar para trazer convicção. De maneira característica, a
última versão da “terceira via” prometeu mudanças progressivas sem ameaçar as
estruturas da vida diária que determinam a cultura política da passividade e da
dependência.[8]
Mas alguém pode ir além do procedimentismo sem se opor aos perigos de
um conceito positivo de liberdade? O argumento depende da idéia de que as
preferências conservadoras expressadas pela população podem ser distinguidas de
interesses mais profundos mascarados pela manipulação ideológica. Esta parece
uma posição não-democrática. Talvez, como Robert Pippin argumenta, não haja
nada abaixo da superfície; talvez os cidadãos respondam racionalmente ao amplo
contexto cultural da modernidade preferindo uma sociedade baseada na dominação
dos seres humanos e da natureza mesmo quando eles pagam o preço de sua escolha
(Pippin, 1995: 54-55).
Este argumento tem uma relevância particular hoje na luz da crença
lugar-comum de que uma sociedade alcançar objetivos moralmente sancionados,
tais como uma participação maior, justiça social, ou compatibilidade ambiental,
seria necessariamente o pior economicamente para esta sociedade. Dada a
compulsão amplamente espalhada por consumir mercadorias, não há esperança para
o socialismo se ele é meramente uma ideologia utópica na qual a riqueza seria
negociada. Experimentos curtos de
virtudes heróicas de algum tipo ocorrem ocasionalmente, mas cedo ou tarde eles
desmoronam na exaustão popular e, portanto, não representam uma alternativa
real. Para escapar do que eu chamo de “dilema do desenvolvimento”, a difícil
escolha entre virtude e prosperidade, alguém pode mostrar que existem
configurações coerentes de recursos humanos e técnicos que suportariam um tipo
diferente de civilização moderna.
Uma vez que uma mudança profunda deste tipo ocorre no padrão de uma
cultura, as motivações ideológicas para isto não são mais uma questão sujeita a
debate e controvérsia, mas são simplesmente tidas como o “jeito que as coisas
são” (Bourdieu, 1977: 164-171). Aquela nova cultura tornou “fatalmente”
auto-evidente o que eram uma vez afirmações especulativas de ideologia e
moralidade. A mudança de civilização pode transcender os aparentes dilemas
através da transformação dos códigos econômicos e técnicos. Ao invés de buscar
concessões custosas entre tais objetivos como a participação e a eficiência,
ambientalismo e produtividade, o design inovador da tecnologia deve trazer
estes objetivos em harmonia. A história é cheia de exemplos de mudança no
horizonte de ações econômicas e técnicas não menos significativas que estas e
igualmente difíceis de imaginar avançando; falhar ao levar em conta tais
mudanças reifica o estado presente da sociedade como um ilusório fim da
história.
Humanismo e História
A tecnologia produz a estrutura material da modernidade. Esta
estrutura não é mais um pano de fundo neutro junto ao qual os indivíduos buscam
sua concepção de boa vida, mas em vez disso comunica esta concepção do começo
ao fim (Borgamann, 1984). Os arranjos técnicos instituem um “mundo” de algum
modo como no sentido de Heidegger, uma estrutura em que as práticas são geradas
e as percepções são determinadas. Mundos diferentes, procedentes de diferentes
arranjos técnicos, privilegiam alguns aspectos do ser humano e marginalizam
outros. O que significa ser humano é, dessa forma, decidido em grande parte no
molde de nossas ferramentas. Na medida em que nós somos capazes de planejar e
controlar o desenvolvimento técnico através de vários processos públicos e
escolhas privadas, nós temos algum controle sobre nossa própria humanidade.
O objetivo de uma boa sociedade deveria ser incapacitar os seres
humanos de desenvolver suas potencialidades ao máximo. A questão mais
importante a se fazer sobre as sociedades modernas é, pois, qual entendimento
da vida humana é incorporado nos arranjos técnicos prevalecentes. Eu argumento
aqui que estes arranjos técnicos atuais colocam limitações no desenvolvimento
humano.
Colocado de frente com este tipo de argumento, o cético com certeza
iria querer saber as razões para preferir algumas formas de desenvolvimento
humano a outras. O que qualifica uma atividade como um avanço para a realização
humana? Com que base nós identificamos
alguns aspectos dos seres humanos como “capacidades” enquanto desprezamos
outros como resultado de vários fracassos e limitações, em suma, como
“incapacidades”?
Estas são questões certamente legitimadas, mas elas não permitem
nenhuma resposta absoluta. Na ausência de respostas absolutas, o melhor que nós
podemos esperar é participar em uma história ainda não terminada e tirar
critérios de progresso da reflexão sobre o seu curso e sua direção. Na tradição
humanista certas realizações têm o status de guias paradigmáticos para o
futuro. As revoluções democráticas revelaram a capacidade de classes mais
baixas tomar a responsabilidade política para elas mesmas, e a Guerra Civil e
várias outras lutas políticas estabeleceram a universalidade do homem apesar de
todas as distinções de casta, raça e gênero. A educação universal mostrou o potencial
da vasta maioria dos seres humanos para se alfabetizar e ter um grau
significativo de independência mental. Mudanças igualmente importantes na vida
social e cultural também moldaram nossa concepção de realização humana. A
individualidade se tornou um valor importante através da emergência da família
moderna, baseada na livre escolha de companheiros e da guarda dos filhos, e a
criatividade fica sobre a influência de vários movimentos culturais associados
ao romantismo.
Nós somos os produtos desta história. Nosso destino está
inextricavelmente envolvido com a progressiva expansão das capacidades para a
auto-expressão, a invenção do homem. Porque nós pertencemos à tradição moldada
por estas realizações, onde quer que nós vejamos luta similares por uma
realização mais completa da liberdade, eqüidade, responsabilidade oral,
individualidade, e criatividade, nós as interpretamos como contribuintes a uma
realização mais completa e ampla das capacidades humanas.
Como as novas demandas pela realização dos potenciais humanos até
agora não noticiados ou suprimidos se manifestam? Eu formulo dinamicamente este
problema em termos do conceito de “interesses participantes” (Feenberg, 1999:
140 e seguintes). Na medida em que alguém está inscrito em uma rede técnica, alguém
tem interesses específicos correspondentes ao potencial para o bem ou para o
mal que tal participação ocasiona. Estes interesses são seguidamente
favorecidos pelos arranjos tecnológicos existentes, mas não sempre, não
inevitavelmente. Sob estas condições, os indivíduos se tornam conscientes das
dimensões de seu ser que são ignoradas, suprimidas, ou ameaçadas pelos seus
envolvimentos técnicos. Quando eles estão aptos a articular estes interesses,
uma oportunidade se abre para reconfigurar o sistema técnico para que seja
levado em consideração um número maior de necessidades e capacidades humanas.
Isto significa: reconhecer o valor intrínseco dos homens tais como os domínios
até agora suprimidos ou não noticiados.
Note o caráter dialético dessa concepção de interesses participantes.
Os tipos de coisas que parecem plausíveis propor como avanços ou alternativas
são muito condicionados pelas falhas das tecnologias existentes e as
possibilidades que elas sugerem. O contexto de luta é, portanto, o nível existente
de desenvolvimento técnico que representa de maneira satisfatória alguns
aspectos da nossa humanidade enquanto suprime outros. As potencialidades são
identificadas em termos da natureza e dos limites dos mundos e não com base em
opiniões arbitrárias. Nós nos tornamos conscientes de nossas potencialidades ao
sentir os limites específicos de nosso tempo, não por causa de uma pura
especulação utópica. Ou mais exatamente, nossas utopias se tornaram “concretas”
no sentido de que elas estão enraizadas nas oportunidades do presente
histórico.
O conceito de interesses participantes informa a noção de “código
técnico” que eu introduzi para explicar as regularidades gerais no design das
tecnologias. Um código técnico é a realização de um interesse em uma solução tecnicamente
coerente para um tipo geral de problema. Esta solução, portanto, serve como um
paradigma ou um modelo para todo o domínio da atividade técnica. A noção de
código técnico pressupõe que existem muitas soluções diferentes para os
problemas técnicos. Algum tipo de meta-lista é então necessária escolher entre
elas. Nas avaliações deterministas e instrumentalistas, a eficiência é o único
princípio da meta-lista. Mas os estudos contemporâneos da tecnologia contestam
esta visão e propõem que muitos fatores além da eficiência têm um papel na
escolha do design. A tecnologia não é “determinada” pelos critérios da
eficiência e é sensível a muitos interesses. Em minha formulação desta tese, eu
argumento que a intervenção dos interesses não necessariamente reduz a
eficiência, mas influencia sua realização de acordo com um programam social
mais amplo. (Feenberg, 1999: cap. 4).
Desta maneira, duas configurações diferentes de produção tecnológica
deveriam cada uma alcançar altos níveis de eficiência, uma utilizando as
habilidades dos trabalhadores e a outra as eliminando. Sob condições sociais
diferentes e com valores diferentes em vista, cada uma poderia ser bem
sucedida. O código técnico em um caso iria impor o trabalho que necessita
habilidades e no outro não, refletindo os diferentes interesses de
trabalhadores e administradores. A tradição humanística estabelece o direito
dos trabalhadores aos avanços técnicos que protegem e desenvolvem suas
habilidades.
Com isto em mente, consideraremos a sociedade como um andaime com três
níveis. No centro existem grupos sociais atuando em defesa de interesses de um
tipo ou outro. Os interesses são o ponto de partida das análises porque eles
são forças muito visíveis, poderosas e constantes que se movem na história.
Entretanto, os interesses não são fatores realmente independentes, nem eles,
por eles mesmos, constituem uma sociedade. Sem uma estrutura material, não
existem interesses, e a menos que alguns interesses sejam sistematicamente
privilegiados, não há ordem social. Portanto, os interesses são
institucionalizados em dois outros níveis e é isto que dá coerência a vida
social. Estes níveis são adequados enquanto se expressam em demandas éticas e
se codificam em leis e códigos técnicos.
Esta perspectiva sugere remodelação dos fatos/valores tradicionais, é
um dilema nos termos da relação dos valores éticos com os fatos técnicos. A
ética é percebida não somente discursivamente e nas ações, mas também nos
artefatos.[9]
O discurso ético e as demandas éticas são freqüentemente provocados pelas
limitações dos códigos técnicos existentes. Por exemplo, onde a segurança não é
adequadamente protegida pelos padrões de produtos existentes, o valor da vida é
apresentado como uma afirmação ética que defende a tentativa de se impor sobre
os fabricantes. A imposição bem sucedida dessa afirmação pela lei ou pela a
regulação a transforma de uma demanda ética em um código técnico e resulta em
uma questão ética que vai para baixo da superfície num tipo de inconsciente
tecnológico. Muitas vezes os métodos ou padrões técnicos atuais já foram
formulados discursivamente como valores e em algum momento do passado foram
transformados em códigos técnicos que nós hoje temos como certos.
A implicação política desta abordagem tem a ver com os limites éticos
dos códigos técnicos modernos. Na medida em que este sistema é baseado na
autonomia operacional de administração, ele está especificamente blindado
contra o reconhecimento de muitos interesses participantes. Esta blindagem se
mostra nos designs técnicos que alienam, injuriam, poluem e causam outros danos
para aqueles excluídos da partilha do poder técnico. O mesmo processo no qual
os capitalistas e os tecnocratas estavam livres para tomar decisões técnicas
sem se preocupar com as necessidades dos trabalhadores e da comunidade gerou um
monte de novos “valores”, as demandas éticas forçaram-se a encontrar voz
discursivamente e realizações nos novos arranjos técnicos. Mais
fundamentalmente, a democratização da tecnologia é privilegiar estes valores
excluídos e os públicos que os articulam.
Política Técnica
Marxismo e Pós-Marxismo
Marx propôs primeiro a idéia de que uma economia controlada pelos
trabalhadores seria capaz de redesenhar a tecnologia e adaptar altos níveis de
habilidades à produção. Ele acreditava que mudanças profundas na educação, na
política, e na vida social se moveriam na direção da requalificação da força de
trabalho. Ainda que regimes comunistas adiassem este prospecto para um futuro
sempre mais distante, os teóricos da auto-gestão o defenderam por muito tempo
dar às firmas controladas pelos trabalhadores o comando do seu próprio
desenvolvimento técnico.
A esta abordagem foi dada uma nova chance de viver através da teoria
marxista do processo de trabalho. Harry Braverman (1974), e uma geração de
teóricos que seguiram seu caminho, mostrou que os interesses econômicos
determinam as principais características do design tecnológico. Eles
argumentaram que o capitalismo introduziu o controle a partir de cima para
impor disciplina de trabalho em uma força de trabalho sem balizas na firma. A
tecnologia foi gradualmente redesenhada em resposta a esta nova forma de
controle para substituir os trabalhadores com muitas habilidades por
trabalhadores mais maleáveis e sem habilidades.[10]
Samuel Bowles e Herbert Gintis investigaram o impacto dessas mudanças
econômicas e técnicas sobre o sistema de educação, que foi reorganizado para
fornecer à indústria capitalista o tipo de trabalhadores que ela exigia.
“Diferentes níveis de educação mantinham os trabalhadores em diferentes níveis
dentro da estrutura ocupacional e, correspondentemente, tendiam para uma
organização interna comparável aos níveis da divisão hierárquica do trabalho”
(Bowles e Gintis, 1976: 132). Então os problemas identificados por Braverman
não estão confinados ao local de trabalho, mas à configuração cultural e vida
social como um todo.
Esta avaliação inverte a ordem usual de explicação para a prevalência
dos alienados e não-educados, atribuindo isto não ao avanço geral da tecnologia
ou a distribuição natural da inteligência, mas a causas sociais. Esta conclusão
sugere a contingência social da tecnologia moderna, que tem
potencialidades democráticas não exploradas que podem ser compreendidas por uma
força de trabalho mais qualificada.[11]
Apesar desta experiência marxista, o projeto de uma teoria crítica da
tecnologia será saudado com ceticismo pelos marxistas que tomaram a economia
política por uma questão séria da crítica social. Mas uma ênfase exclusiva na
economia política tende a superestimar a racionalidade e a coerência das
estratégias capitalistas e subestimar a importância das resistências, das
inovações, das reformas e de todos os domínios exceto a luta de classe, onde,
infelizmente, há pouco a se dizer.
Além disso, agora nós sabemos que muitas questões fundamentais da
civilização afetam os diferentes regimes políticos. As feministas e os teóricos
que falam sobre raças estão certos de que a igualdade é sempre um assunto muito
importante. Abolir a discriminação sob o capitalismo não irá abolir as
desigualdades econômicas, e isto é tão verdade que a reforma socialista da
economia conseguiu deixar a discriminação intacta. O ambientalismo, também,
aparece como um desafio para todas as sociedades industriais, independente de
seus sistemas econômicos.
Em anos recentes, ativistas envolvidos em políticas ambientais, e
políticas de raça e gênero, desafiaram o marxismo tradicional e colocaram em
questão a importância do planejamento econômico e do controle através dos
trabalhadores (Boggs, 1986). O afastamento do marxismo está refletido em
teoria, mais notavelmente no trabalho de Michael Foucault. Seus estudos
históricos do processo de racionalização mostram as raízes das modernas
estruturas de poder em uma variedade de técnicas sociais. Ele enfatiza a
dispersão do poder através de um amplo número de instituições como as prisões,
hospitais, escolas e assim por diante.
Mas qualquer que seja o mérito dessas ameaças, os novos terrenos da
luta privilegiados pelo “pós-marxismo” também são atravessados por mediações
técnicas que dão suporte a poderes diferenciais muito parecidos com aqueles que
caracterizam o cenário industrial. A mudança ainda é prometida pela
substituição do controle a partir de cima pelo controle de baixo. O trabalho de
Foucault, em particular, defende novas formas de resistência ao exercício do
poder através das estratégicas técnicas. Assim, apesar da polêmica que opõe
Foucault e a “concepção marxista, ou alguma concepção correntemente tida como
marxista”, sua abordagem oferece uma importante fonte para uma teoria crítica
da tecnologia (Foucault, 1980: 88).
A rejeição qualificada de Foucault do marxismo sugere a existência de
uma versão mais interessante do que aquela que usualmente associamos com a
crítica da economia política capitalista. De fato, existe outro aspecto em
Marx, que deve ser considerado o primeiro estudante sério da resistência à
tecnologia moderna. Ele observou que a mediação técnica do trabalho acelerou o
crescimento econômico, mas também criou novas hierarquias sociais. Ao mesmo
tempo, Marx argumentou, a tecnologia trouxe à luz um novo tipo de classe mais
baixa capaz de democratizar a economia. Mais de um século depois, nós vemos a
mediação tecnológica alcançar muito mais do que o domínio da produção, chega em
todos os aspectos da vida social, seja ele a medicina, a educação, a criação
das crianças, a lei, música, esportes, mídia, e assim por diante. E, enquanto a
instabilidade econômica do mercado capitalista tem sido significativamente
reduzida, para qualquer lugar que a tecnologia vá, estruturas sociais
centralizadas e hierarquizadas vão segui-la.
A transformação da tecnologia está
situada neste contexto. É uma tentativa de entender o sentido das conseqüências
políticas da mediação técnica generalizada. Sob estas condições, a tecnologia
emerge como uma questão pública fora de uma variedade de lutas de alguma
maneira semelhantes ao modo em que o ambientalismo se cristalizou anteriormente
ao redor de questões até então separadas tais como o controle de população, os
protestos nucleares, e assim por diante. A ampliação da esfera pública para
circundar a tecnologia caracteriza uma mudança radical de um consenso anterior
que não admitia interferência nas decisões dos especialistas técnicos.
A política técnica de hoje envolve uma variedade de lutas e inovações
com conseqüências significativas para a estrutura das instituições técnicas
principais e para a autocompreensão das pessoas ordinárias. Nós precisamos
desenvolver uma teoria para explicar o peso crescente dos atores públicos no
desenvolvimento tecnológico. Esta teoria deverá alguma coisa ao marxismo, mesmo
se ela não puder ser qualificada como marxista no sentido usual do conceito.
Reconceituando o Socialismo
Ainda é razoável esperar por mais do que resistências esparsas ao
sistema existente? Estas resistências poderiam se unir e formar a base para uma
alternativa socialista? De acordo com o padrão de avaliações, o fracasso do
comunismo finalmente nos acordou do sonho socialista. Supostamente, a
propriedade pública e o planejamento econômico são tão inerentemente
ineficientes que o comunismo estava condenado desde o começo. O debate sobre
esta visão amplamente espalhada é tanto técnico quanto inconcludente, um
infeliz estado das coisas que não será modificado por qualquer coisa neste
livro, à medida que eu não tenho qualificação para intervir nisto.[12]
É interessante notar, entretanto, que os economistas não são de jeito nenhum
unânimes em declamar a reza do livre mercado tão freqüentemente ouvida de
comentadores políticos.
Joseph Stiglitz, por exemplo, mostrou quão irreais são as suposições
que dão suporte a fé neoclássica nos mercados. Enquanto ele concorda com a
opinião mais amplamente aceita de que as economias comunistas falharam por
falta de algumas coisas como a competição, incentivos efetivos e um sistema de
preços realista, ele também argumenta que as economias capitalistas não são
modelos, mas estão repletas de problemas, ainda que menos severos. Um exemplo
de seu estilo de argumento mostra o quanto ele abriu a porta do socialismo
mesmo em um livro em que a intenção era enterrá-lo como um experimento
histórico fracassado.
Stiglitz mostra que a supostamente perfeita eficiência dos mercados
competitivos na teoria neoclássica carrega uma pequena semelhança com os
mercados atuais. Porém a competição imperfeita que existe fornece informação
vital às companhias sobre níveis alcançáveis de eficiência. A argumentação pela
competição é, portanto, persuasiva nos terrenos da informação teórica mesmo que
ela fracasse nos terrenos clássicos. Mas a mudança nos terrenos tem uma
conseqüência interessante: uma abordagem de informação teórica deixa muito mais
espaço para a regulamentação de estado e para a propriedade pública. Se os
mercados capitalistas são geralmente, e em princípio, imperfeitos ao invés da
perfeição aproximada como nos modelos neoclássicos, então a intervenção estatal
extensiva para preservar sua competitividade é plausível. Ainda mais
interessante é a observação de Stiglitz que as firmas de propriedade pública
podem ser colocadas na competição para produzir os tipos de vantagens
informacionais que o capitalismo deriva da propriedade privada (Stiglitz, 1994:
cap. 7). Ele conclui, “A diferença entre a competição e o monopólio é a
distinção de importância de primeira ordem, em vez da distinção entre
propriedade estatal e privada” (Stiglitz, 1994: 255).
Apesar dos desacordos insolúveis entre os entendidos do assunto, é
impossível evitar a consideração dessas questões e a formação de uma opinião. A
minha é, na verdade, formada menos com base nas considerações técnicas da
teoria econômica do que no senso comum, que nos diz que sob certas condições,
pessoas razoavelmente espertas, honestas e motivadas podem alcançar um
crescimento econômico em ambos sistemas. Se não fosse assim, a União Soviética
não poderia ter se industrializado tão rapidamente e de maneira satisfatória.
Com certeza o planejamento implementado não foi suficientemente eficiente para
fazer a União Soviética competitiva no mundo do mercado, e no final, a economia
estava sendo administrada de forma incompetente mesmo pelos padrões soviéticos,
mas estas considerações não são necessariamente decisivas visto que nós podemos
apontar exemplos significativos de crescimento sob a propriedade pública. Neste
contexto, é relevante que grandes porções da economia ocidental são ou têm sido
administradas pelo Estado desde a Segunda Guerra Mundial sem as conseqüências
econômicas catastróficas da propriedade estatal da União Soviética. O caso
francês é particularmente notável (Stiglitz, 1994: 233).
Parece óbvio que a tirania de Stálin causou mais danos a economia
soviética do que o planejamento enquanto tal. O planejamento ajuda a ter um
serviço civil honesto e fluxos livres de informação, fatores culturais e
políticos que cruzam a distinção entre capitalismo e socialismo. Sem eles, os
administradores enfrentam a alternativa do caos ou de controles excessivamente
centralizados. Também é grave que aquilo que são firmas essencialmente de
negócios não se tornem agências de bem estar social, fornecendo garantias aos
empregados e serviços compatíveis com suas funções primárias. E se a
administração é incapacitada de colocar políticas de disciplina rigorosas por
algum grau de controle dos trabalhadores, então deve haver alguma conexão entre
a compensação e o sucesso comercial mesmo nas empresas de propriedade estatal.
Finalmente, pode ser necessário ter um setor privado apropriadamente amplo ou
competição internacional significativa para que o setor público opere bem.
Se as economias mistas, do tipo que têm emergido por todo o mundo
capitalista avançado são eficientes nos termos exatos do mercado, elas
funcionam e elas podem alcançar objetivos sociais e políticos desejáveis. Não
os mercados livres, mas a regulamentação e a propriedade pública tornam
possível a excelência educacional e a assistência médica para todos, a liberdade
da comunicação e a igualdade na vida pública, a igualdade racial e de gênero,
cidades atrativas e seguras, e proteção ambiental. Todos estes objetivos têm
implicações a longo prazo para o bem estar que são difíceis de medir, mas não
são menos importantes por isto. Infelizmente, a segurança do emprego está entre
os objetivos que não são do mercado e que são mais vigorosamente buscados
quando o poder vai para as mãos dos trabalhadores. É fácil entender porque a
imobilidade se torna um tremendo fardo sobre a economia e em qualquer caso é
irrelevante para a transformação da civilização a longo prazo definida pelo
socialismo. Eu argumentarei em capítulos posteriores que a transformação
deveria ser promovida com uma ênfase em outros objetivos.[13]
A atual onda de cortes no orçamento e privatizações tem benefícios
econômicos limitados na media em que racionaliza o emprego, mas sacrifica
outros objetivos sociais importantes e decisivamente executa os planos da
democracia econômica. Se a democratização fosse uma prioridade, seria
necessário estender o alcance do controle do estado consideravelmente mais, da
mesma maneira que uma estrutura para mudanças radicais na administração e na
tecnologia. Talvez esta nova configuração possa ser chamada de “socialismo”, se
entendermos que a palavra agora se refere a uma sociedade que privilegia bens
específicos que não são os de mercado e emprega muito mais regulamentações e
propriedades estatais do que as sociedades capitalistas existentes.
Note que o socialismo sob esta nova definição não fica em oposição
total ao capitalismo como nós o conhecemos. Em vez disso, ele representa uma
trajetória possível de desenvolvimento partindo dos estados de bem estar social
existentes. Algumas sociedades capitalistas estão claramente mais avançadas
nesta trajetória do que outras e poderiam mais facilmente se mover em direção
ao socialismo. As tensões de hoje entre os diferentes modelos de capitalismo
atestam a relevância contínua da alternativa socialista. Enquanto muitos
americanos zombam do supostamente arcaico estado de bem-estar europeu, a
maioria dos eleitores européia abomina profundamente o que eles ouvem do
capitalismo de “livre mercado” americano e rejeitam as tentativas de impô-lo.
Entretanto, amplas mudanças sociais e políticas teriam que acontecer antes
mesmo de um estado de bem estar social mais avançado mover-se para além do
horizonte do capitalismo. Estas mudanças não impossíveis, mas elas também não
são prováveis em um futuro próximo. Portanto, a discussão não é sobre
probabilidades, mas sobre possibilidades. E as possibilidades são importantes à
medida que elas continuam a ser concebidas por um grande número de cidadãos
descontentes nas sociedades capitalistas existentes.
Em resumo, mesmo que o comando da economia possa estar morto, eu não
estou convencido que nós vimos o fim da idéia de extensão da propriedade pública
no contexto de uma economia mista. E se isto é economicamente possível, existem
razões políticas fortes para favorecê-la. As grandes concentrações de riqueza
associadas às empresas modernas de larga escala pesam muito na balança
democrática – muito mesmo. O controle privado dos conglomerados da mídia, a
indústria da opinião, é incompatível com um debate público sério. Os níveis de
regulamentação exigidos pelos problemas ambientais das sociedades modernas
parecem crescentemente incompatíveis com a propriedade capitalista de certos
tipos de indústria, tais como as indústrias de petróleo. E, como eu argumento
por todo este livro, o controle capitalista é incompatível com uma evolução a
longo prazo da tecnologia que favoreceria as habilidades e a participação
democrática em instituições da sociedade mediadas tecnicamente. Todas as
implicações desta argumentação são desenvolvidas no capítulo 6.
As Alternativas Radicais
A Alternativa Pós-Humanista
Que as mudanças de civilização exigem mudanças tecnológicas é uma
linha de argumento familiar pelo menos desde Mumford e Marcuse; entretanto,
suas implicações econômicas e técnicas não foram muito trabalhadas para
transmitir convicção. Isto é o que eu tento alcançar aqui. Eu argumento que a
sociedade existente contém a potencialidade suprimida de uma alternativa de
civilização coerente baseada em transformações das instituições, da
ideologia, das atitudes econômicas e da tecnologia que se sustentam mutuamente.
O conceito de potencialidade que é central para este argumento pode
ser desenvolvido de várias maneiras. Existe uma corrente influente da teoria
“verde” e “feminista”, representada por exemplo por Carolyn Merchant, que
formula o projeto da reforma tecnológica em termos de um resgate do corpo e do
envolvimento corporal na natureza (Merchant, 1980). Esta visão envolve um tipo
de reconexão vitalista da natureza que contradiz a descrição mundial das
ciências modernas físicas e biológicas. As potencialidades às quais estes
teóricos se referem são supostamente dimensões ontologicamente reais dos seres
humanos e da natureza. Mesmo que ignoradas pela ciência atual, estas dimensões
seriam identificadas por uma ciência reformada do futuro.
Algum dia, poderá haver uma descrição mundial científica mais de
acordo com o espírito do pensamento ecológico contemporâneo. Mas nós não
precisamos esperar a reforma da ciência para reformar o design tecnológico.
Pelo contrário, o conhecimento científico e técnico correntes têm recursos para
uma reconstrução muito radical da herança tecnológica. Um conceito de
potencialidade enraizado na herança de lutas atuais pode guiar o processo sem
basear-se em um novo conceito de natureza.
Entretanto, a maior parte dos participantes dos debates contemporâneos
sobre sociedade e tecnologia considera a própria noção de potencialidade como
ultrapassada e metafísica. Eu acredito que isto seria uma afirmação da objeção
de Habermas, e certamente de muitos teóricos mais conservadores que, como
Habermas, estão em migração total de tudo que eles percebem como herança
utópica do marxismo. Infelizmente, muitos desses teóricos escorregam de volta
para uma visão conformista da neutralidade da tecnologia que os leva a uma
margem pouco crítica. Sem o conceito de potencialidade, alguém pode sustentar
uma postura radical? Esta questão divide a crítica pós-moderna da teoria
crítica. O pós-modernismo ataca todas as formas de discurso totalizador,
incluindo a conversa sobre potencialidade, na crença de que a totalização é a
lógica da tecnocracia (Lyotard, 1984; Jay 1984). A liberdade e a justiça são
identificadas com o que evita qualquer tipo de definição fixa ou controle, até
mesmo a autodefinição e o autocontrole do indivíduo moderno.
A versão mais importante dessa alternativa a uma teoria crítica da
tecnologia é a crítica “ciborgue” ou “não-moderna” do humanismo. Alguma coisa
similar tem sido discutida pelo menos desde o ataque de Nietzsche sobre a ética
cristã, a democracia e o socialismo. A crítica de Heidegger da metafísica
também deveria ser mencionada nesta conexão. Mais recentemente, Foucault
recolocou o humanismo na agenda da esquerda. Um grupo de pensadores influentes,
incluindo Donna Haraway e Bruno Latour, gostaria de adicionar o peso moral da
tradição às inovações tecnológicas da filosofia pós-empirista da ciência em uma
nova constelação de teoria radical. Significativamente, a idéia de
potencialidade não tem nenhum papel nessas formulações, que buscam uma base
diferente para a crítica.
Os pós-humanistas argumentam que a tecnologia não deveria ser vista
como algo diferente dos humanos e da natureza porque a tecnologia “emerge
juntamente” com os mundos social e natural. Os humanos, a natureza e as
tecnologias podem apenas ser distinguidos teoricamente porque eles
primeiramente foram distinguidos através de várias práticas em que todos, não
meramente os humanos, empenharam-se. “Coletivos” ou “híbridos” abarcando
humanos e não-humanos são o sujeito e o objeto do conhecimento pós-moderno:
sujeito, porque nós sabemos através das nossas tecnologias e não diretamente
como nos velhos paradigmas do conhecimento baseados em uma relação pré-definida
dos humanos com a natureza; objeto, porque o que nós sabemos é um complexo de
dimensões humanas, naturais e tecnológicas mutuamente definidas (Haraway,
1995).
A crítica pós-humanista argumenta convincentemente que os grupos
sociais em uma sociedade como a nossa devem ser definidos em termos das
mediações técnicas que tornaram possível eles se formarem. Este pensamento pode
ser criticamente desdobrado para bloquear a marginalização essencialista e
pseudonaturalista de maneiras “desviantes” de ser e viver. Daí a conexão entre
a posição de Haraway e do feminismo anti-essencialista que rejeita as
suposições normalizadoras sobre gênero. A antropologia pós-humanista da ciência
de Latour adota premissas similares à crítica do cientificismo e da tecnocracia
que tentam colocar a razão fora do alcance dos envolvimentos sociais. O
trabalho de Latour enfureceu os defensores do racionalismo, um sinal seguro de
sua efetividade.
Mas o pós-modernismo alega muito mais do que é necessário para
constituir estes argumentos radicais. Ele quer chegar a um nível mais profundo
no qual não apenas os grupos sociais e as tecnologias “emergem conjuntamente”,
mas também o homem ou o social e o natural como tal. Agora, é verdade que a
fronteira entre o natural e o social é freqüentemente um assunto controverso,
particularmente na medicina e em outros domínios do “corpo político”. Mas a
função da controvérsia, que finalmente delineia a fronteira, pressupõe a
distinção geral entre natureza e sociedade. É, na verdade, esta própria
pressuposição que a princípio torna possível ter uma controvérsia. Por quê?
Porque a controvérsia é possível somente onde a contingência do social pode ser
distinguida da necessidade do natural.
Considere, por exemplo, a notável tribo da Amazônia que acredita que
depois da morte os homens são transformados em jaguares, enquanto as mulheres e
as crianças simplesmente desaparecem. Claramente, neste contexto seria difícil
levantar objeções feministas à discriminação pós-morte como uma construção
cultural. Nós apenas podemos fazer isto porque nós sabemos como distribuir as
ações entre o social e o natural.
Esta pressuposição ontológica é, obviamente, sujeita a uma crítica
epistemológica que coloca que afinal de contas somos “nós” que fazemos a
distribuição. Alguns construtivistas sociais argumentaram que isto faz da
sociedade um sujeito fundamental e da natureza meramente um de seus postulados.
(Vogel, 1996). Mas a linha pós-humanista é diferente. O “sujeito” é agora
redefinido não como um conhecedor que postula objetos, mas como o “ator”, o
agente, que efetua mudanças no mundo. Nestes termos, a natureza é um sujeito
tanto quanto sociedade. O processo em que a linha entre a sociedade e a
natureza é desenhada por sujeitos envolve atividade em ambos os lados da linha
para que esta seja desenhada. De fato, visto que os sujeitos humanos e naturais
apenas podem ser distinguidos uma vez que a linha entre eles é desenhada,
“humanos” e “natural” não podem ser categorias definitivas, mas devem ser
relativas a alguma coisa mais fundamental. Latour, por exemplo, chama esta base
da rede de “atuantes”. Em Haraway, a metáfora do “ciborgue” tem um papel
similar. “Hibridez” é outro termo geral seguidamente identificado com a nova
ontologia.
Estas noções são notavelmente abstratas e difíceis de confirmar. Este,
acredito eu, é um sinal de um problema profundo. Como, afinal de contas, os
atores podem atuar antes de sua existência ter sido definida por sua ação?
Como, alguém pode se perguntar, nós podemos falar de atuantes sem usar a
linguagem da modernidade na qual o homem e a natureza são a priori distintos?
Dessa forma, a base definitiva à qual a teoria se refere implicitamente parece
ser uma sublime insignificância sobre a qual nada pode ser dito, aquela noite
em que todas as vacas são pretas, como Hegel lamentou-se da identidade
sujeito-objeto de Schelling.
Mas não é esta a conclusão dos pós-humanistas. Eles têm muito a dizer
sobre seu ponto de partida fundamental. O que eles dizem está contido em
análises locais cuidadosas que supostamente devem ser capazes de delinear a
emergência conjunta da sociedade e da natureza no processo de desenvolvimento
científico e tecnológico. Este provincianismo transcendental criou uma
nova abordagem para os estudos da ciência chamada “teoria da rede de atores”.
Ao adotar esta abordagem, Latour distribui os termos usualmente atribuídos à
subjetividade humana nas fronteiras entre os atores humanos e não-humanos cuja
participação na existência é ela própria o objeto da história. O mais famoso
exemplo dessa estratégia retórica é a discussão de Michel Callon da pesquisa
científica sobre pentéolas em que os pequenos demônios são descritos como mais
ou menos “colaboradores” com os pesquisadores (Callon, 1986).
Questionáveis como são tais descrições, existem ainda mais problemas
difíceis na teoria da rede de atores. Apesar da sua contribuição para a crítica
das suposições normalizadoras que dão suporte às modernas formas de dominação,
o pós-humanismo termina minando sua própria base crítica. Se as redes
supostamente são uma realidade fundadora, é necessário refutar as pretensões da
linguagem de todo dia, em que coisas como seres humanos e objetos naturais têm
uma existência independente do seu envolvimento mútuo. Esta abordagem senso
comum levaria de volta ao “essencialismo”. Antes de você perceber, nós
estaríamos falando sobre a natureza humana e suas potencialidades. A nova rede
de ontologia adota, portanto, um operacionalismo que impede a introdução de
informações que não é efetiva, no sentido de decisiva, para a organização da
rede.
Isto têm implicações normativas perturbadoras. Significa, por exemplo,
que a perspectiva dos perdedores em qualquer luta desaparece de vista como se
não pudesse ser operacionalizada em termos da distinção de natureza/sociedade
efetuada na estrutura da rede (Radder, 1996: 111-112). Se nossa feminista da
Amazônia protesta pelo seu status após a morte, nós não podemos encontrar apoio
para ela em um pós-humanismo rigoroso pela simples razão de que ela não tem
direito metodológico de se referir a uma distinção transcendente de natureza e
sociedade para ganhar o seu caso. Na verdade, ela pode protestar pelas
implicações repressivas das suposições essencialistas subjacentes na sociedade
dela, mas evidentemente não em nome de uma igualdade natural ou dos direitos
humanos. Como este processo pode levar a um programa positivo de reforma não
está claro.
Latour tem evidentemente sido incomodado por tais críticas e em um
livro recente tenta dirigir-se a elas. Em Políticas da Natureza, ele
está ansioso para mostrar que sua substituição radical por uma teoria social
pode concluir o trabalho através categorias tradicionais (Latour, 1999). De
fato, ele concebe que a menos que possa fazer este trabalho da mesma maneira,
ou melhor do que a velha teoria social, seu argumento cairá no esquecimento
(Latour, 1999: 148). O esforço é um brilhante tour de force, mas no fim
eu temo que ele permaneça preso em um beco sem saída que geralmente caracteriza
o pós-humanismo, a inabilidade de desenvolver critérios de progresso fora da
análise de situações e lutas locais.
Latour concorda que deve ser possível resistir à definição da
realidade imposta pelos vitoriosos na luta pelo controle da rede. O território
tradicional para isto é o apelo do consenso social por uma verdade
transcendente. Latour faz objeções a este apelo no domínio em que ele é usado
pelas elites científicas para bloquear o discurso democrático. Na verdade, isto
é apenas metade da história. A extensão igualitária da história moderna também
repousa em tais apelos, pelas classes mais baixas, pelas mulheres, escravos, os
colonizados, cada um desses tem argumentado com sucesso que as diferenças
naturais não decretam sua subordinação.
Mesmo que este fato da história democrática não entre no argumento de
Latour com a proeminência da sua crítica da autoridade científica, ele está bem
ciente disto. Contudo, ele argumenta de um ponto de vista puramente
operacional, o apelo democrático à natureza não tem nada a ver com a natureza
enquanto tal e tudo a ver com os procedimentos de debate e luta. O que nós
realmente precisamos não é uma distinção clara de “natureza” e “sociedade”,
“fato” e “valor”, “verdade” e “poder”, mas um entendimento claro da organização
legitimada do debate público. A verdadeira democracia deve proteger o acesso
público de entidades e pessoas até agora excluídas, enquanto também assegura
que novos elementos e vozes sejam integrados harmoniosamente a estrutura
estabelecida da rede. Em resumo, a concessão deve ser feita pela intervenção do
novo e imprevisível preservando, ao mesmo tempo, a rede da incoerência e do
colapso (Latour, 1999: 172-173). A divisão significativa de função não coloca
em contraste as realidades ontológicas (e.g., natureza e sociedade), mas os
procedimentos que Latour chama de “poder de inclusão”, que permite contestações
aos limites da rede, e o “poder de ordenamento”, que coloca cada entidade
incluída em seu lugar (le pouvoir de prise en compte e le pouvoir
d’ordonnancement?) (Latour, 1999: 156). A democracia é, portanto, uma
questão de manter a possibilidade permanente de contestação.
Até aqui tudo bem. Latour reconhece o problema da participação dos
atores subordinados e oferece uma solução. Mas alguém poderia querer saber como
estes atores são para argumentar a favor das reformas que eles desejam sem
referência a qualquer outra sanção transcendente. A moralidade nesta nova
teoria está agora restrita a manter o coletivo aberto a novas reivindicações e
a ordenar seus membros em uma hierarquia (Latour, 1999: 213). Estas operações
tomam o lugar das velhas distinções de certo e bom. Mas elas não são exatamente
equivalentes. Na avaliação de Latour, a moralidade não é mais baseada em
princípios, mas nessas regras operacionais. Os apelos grandiosos do passado por
igualdade e direito humanos foram descartados como invenções modernistas
incompetentes. Os atores subordinados devem agora se apropriar da teoria de
Latour para articular suas demandas nos termos desta própria teoria. Este é um
problema significativo, mas Latour promete que os argumentos complicados,
necessários para dar suporte a sua saída radical das noções aceitas como
corretas, em breve parecerão óbvios como o próprio senso comum é revisto para
estar de acordo com a sua visão (Latour, 1999: 32-33). Isto é muito improvável
na medida que depende da expansão de um operacionalismo ontológico radical que
elimina e redefine todas as categorias do senso comum, da filosofia e da
ciência social.
Certamente há um momento de verdade na demanda anti-essencialista por
contestação permanente, por dispersão e diferença, mas estas qualificações não
podem fornecer a base para uma abordagem positiva à reforma tecnológica. A
normalização não é a única fonte das estruturas modernas da dominação, nem é
hoje suficiente para denunciar o potencial distópico da tecnocracia. As armas
nucleares, a alienação sistemática da força de trabalho, a exportação da
poluição para o Terceiro Mundo, estes não são produtos de burocracias rígidas, a
autoridade delas é solapada por um novo individualismo pós-moderno, mas de
centros flexíveis de comando que estão bem adaptados às novas tecnologias que
eles planejaram e implementaram. A oposição a estes centros deve também se opor
à tendência presente do design tecnológico e sugerir uma alternativa. Para este
propósito é importante reter uma noção forte de potencialidade e com ela
contestar os designs existentes.
A Contribuição da Teoria
Crítica
A idéia mais fundamental da Teoria Crítica é a transgressão do
particular sobre o universal.[14]
A realidade, a vida e o indivíduo são mais ricos em conteúdo do que as formas
que tentam segurá-los e que os seguram de maneira eficiente dentro de uma ordem
social. A dominação consiste na supressão do indivíduo pelo “universal”, o
“conceito”. Mas a crítica não está voltada para a conceituação em geral. Ao
invés disso, esta é uma crítica do conceito institucionalizado, historicamente
estabelecido por uma hegemonia específica e conseqüentemente contestável. Nesta
estrutura, “natureza” não se refere ao objeto da ciência natural nem a uma
ordem moral superior, mas se refere a aquilo que evita a conceituação e que
inspira resistência. Esta transgressão diminui constantemente enquanto a
tecnologia aumenta o alcance do universal dentro de fatos materiais da
existência diária, mas ela não pode ser eliminada. O indivíduo permanece como
uma fibra de potencialidade prenunciada dentro da qual tece um tecido de
demandas transcendentes.
O que Adorno chamou de “consciência da natureza” se refere ao ato de
reflexão em que uma racionalidade tecnologizada relembra seus limites,
reconhece a existência e as reivindicações da natureza que estão fora de seu
alcance (Adorno e Horkheimer, 1972: 40). O conceito de Marcuse de “universal
substantivo” reconhece o indivíduo como um ser complexo com potencialidades de
desenvolvimento dinâmicas, em um alto grau independência da ordem social dada e
de seu poder tecnológico (Marcuse, 1964: cap.5). A referência persistente à
natureza, à reflexão e à individualidade como a base de uma crítica do poder
totalitário da tecnologia distingue a teoria crítica de várias formas do
pós-modernismo e pós-humanismo.
Na ausência do poder, isto é, do suporte efetivo nas redes sociais
estabelecidas, as potencialidades têm sempre sido definidas em termos de
conceitos universais transcendentes, tais como natureza, justiça e humanidade.
A teoria crítica mantém esta tradição ao longo de linhas primeiramente
formuladas por Marx. Marx fazia objeções ao universalismo por razões parecidas
com as razões dos pós-modernistas contemporâneos, mas ele historicizava os
valores ao invés de aboli-los. Por exemplo, a teoria crítica evita o
essencialismo naturalista mesmo quando nos remete à natureza através da ênfase
dos traços negativos de que a sociedade tem deturpado e danificado. A natureza
reprimida se manifesta de várias formas: através da resistência, de conflitos,
através até do humor, mas também através de doenças, sofrimento, e agressão
destrutiva. O diagnóstico dos conflitos e doenças sociais nos torna incapazes
de identificar as potencialidades que poderiam se concretizar em um mundo
socialmente diferente. A tarefa da teoria social radical ainda é articular e
explicar o contexto histórico das demandas transcendentes, não a fim de
eliminá-las, mas de entender como elas desenvolvem uma causa humana mais ampla
com base nas premissas já existentes.
Estes temas podem ajudar a acertar a ênfase da crítica contemporânea.
A Teoria Crítica reconhece que parte dos atores humanos extravasa qualquer
envolvimento em uma rede particular e fornece uma base para criticar a
construção das redes. Isto retém a noção senso comum de que os atores humanos
têm capacidades reflexivas únicas. Estas capacidades tornam possível aos homens
representar as redes em que eles “emergem” e avaliá-las em oposição às
potencialidades não concretizadas identificadas em pensamento. Reflexão deste
tipo é essencialmente diferente das contribuições de atores não-humanos, e
forma a base para lutas sociais que podem desafiar ou romper as redes e até
reconfigurá-las de outras formas. Estas reconfigurações têm uma dimensão ética
que não pode ser explicada em termos pós-humanistas.
Neste livro eu argumento que o próprio empreendimento técnico é
imanentemente inclinado a se dirigir às demandas que nós formulamos como
potencialidades, mas isto está artificialmente diminuído nas sociedades
modernas. Abrir o desenvolvimento técnico à influência de um número mais amplo
de valores é um projeto técnico que exige uma participação democrática maior. A
democratização radical pode, portanto, estar enraizada na própria natureza da
tecnologia, com conseqüências profundas para a organização da sociedade
moderna. Esta abordagem não envolve uma ameaça ontológica à ciência moderna e
não deixa abertura para uma carga de utopia totalitária. Em termos
estratégicos, ela identifica o território comum entre a teoria crítica e as
profissões científicas e técnicas.
Existe algum precedente para tal abordagem na tradição da Escola de
Frankfurt. Enquanto Adorno e Horkheimer permaneceram firmemente hostis à
tecnologia, Benjamin e Marcuse viram potencialidades democráticas no
desenvolvimento tecnológico. A famosa discussão de Benjamin da “reprodução
mecânica” da arte defendeu as novas tecnologias do filme e da fotografia por
sua habilidade de tirar a arte de dentro do museu e colocá-la dentro da vida
diária das massas (Benjamin, 1969). O primeiro ensaio de Marcuse sobre a
tecnologia antecipa sua última tese de unidimensionalidade, mas também aponta
para o potencial democrático da tecnologia moderna, que acaba com as diferenças
radicais em atitude e cultura associadas com as formas pré-modernas de
autoridade (Marcuse, 1941). Depois, no livro Ideologia da Sociedade
Industrial: O Homem Unidimensional e no livro Sobre a Libertação,
Marcuse desenvolve uma avaliação incompleta, mas sugestiva, da nova tecnologia
de uma sociedade livre (Marcuse, 1964, 1969).
Nenhuma dessas avaliações positivas da tecnologia está suficientemente
desenvolvidas para entrecortar de maneira proveitosa os estudos contemporâneos
da tecnologia. Eu prossigo com o argumento até um nível muito mais concreto
através de uma análise da natureza da tecnologia e da relação técnica. Eu
mostro que os atributos de controle orientado da tecnologia enfatizados nas
sociedades capitalistas e comunistas não exauriram suas potencialidades. Uma
forma fundamentalmente diferente de civilização enfatizará outros atributos da
tecnologia compatíveis com uma distribuição mais ampla das qualificações
culturais e poderes. Tais atributos estão presentes tanto nos artesãos
pré-industriais quanto nas profissões modernas. Eles incluem o investimento
vocacional dos sujeitos técnicos em seus trabalhos, formas colegiais de
auto-organização, e a integração técnica de um amplo número de valores mais
vitais, além da mera busca por lucro e poder. Hoje estas dimensões da
tecnologia podem ser trazidas à tona apenas no contexto da reorganização
democrática da sociedade industrial, que elas tornam possível.
[1] O presente texto é a introdução do livro Transforming technology. A critical Theory revisited. New York: oxford University Press, 2002, pp. 3-35. Tradução Carlos Alberto Jahn.
[1] Ver, para um exemplo, Rescher (1969). Emmanuel Mesthene (1970: 48-57)
sugere que em vez de limitar a tecnologia, os valores se transformarão para
tirar vantagem das novas oportunidades que ela cria.
[2] Para uma revisão dessa tendência, ver Winner (1977). Eu discuto
Heidegger minuciosamente em Feenberg (1999: cap. 8).
[3] Qualificar Heidegger e Ellul de “fatalistas” parece razoável apesar
dos protestos de seus defensores. De que outra maneira podemos descrever alguém
que diz “Nós podemos no máximo somente acordar a prontidão para a probabilidade
[de Deus]”? (Heidegger, 1977b: 18). Os defensores de Ellul o apresentam como
distribuidor da mesma mensagem. Ver Christians (1981: 153).
[4] Para outra declaração da versão radical da tese de dois setores, ver
Gorz (1980b) e Gorz (1988).
[5] Para mais sobre a questão da modernidade japonesa, ver Feenberg
(1995: caps. 8 e 9). Lá eu reconsidero este julgamento negativo. Na análise
final, a questão permanece em aberto.
[6] A mais poderosa declaração desta posição antes de Ideologia da
Sociedade Industrial: O Homem Unidimensional (1964) foi a Dialética do
Iluminismo de Adorno e Horkheimer (1972)
[7] Para um relato dos anos de 1960 da sua parte mais radical, ver
Feenberg e Freedman (2001). Demonstrações recentes contra WTO e IMF mostram que
o espírito da resistência não está inteiramente morto.
[8] Borgmann (1984) oferece uma explicação persuasiva dessas estruturas.
[9] Latour descreve algo similar como a “delegação” de normas aos
instrumentos (Latour, 1992).
[10] Para uma revisão da teoria marxista do processo de trabalho, ver
Thompson (1983).
[11] Ver a discussão do desenvolvimento contingente em MacKenzie (1984).
Para uma discussão econômica de contingência, ver Arthur (1989).
[12] Para uma defesa do socialismo de mercado, ver Schweikart (1993). Para
o outro lado da discussão, ver Stiglitz (1994).
[13] Muito está em jogo ao pesar a mobilidade do emprego e os valores da
comunidade que levam as pessoas a se agarrarem desesperadamente em seus papéis
em um local de trabalho particular. Os custos de uma ênfase extremada em ambos
valores são enormes. O sistema americano de mobilidade total e conseqüente
insegurança é profundamente insatisfatório julgando pelos problemas de anomia,
abuso de substâncias e crimes associados a isto. A alternativa européia protege
a comunidade em grande parte às custas de taxas de desemprego inaceitavelmente
altas. Nenhum sistema está estável a longo prazo. Soluções criativas são
necessárias qualquer que seja o sistema econômico do futuro.
[14] As palavras “Teoria Crítica” serão escritas com letras maiúsculas em referência a clássica Escola de Frankfurt, em letra minúscula quando usada no sentido genérico para se referir a qualquer abordagem que ofereça uma crítica social da racionalidade comparável.