MARCUSE
OU HABERMAS: DUAS CRÍTICAS DA TECNOLOGIA*
O debate entre Marcuse e Habermas sobre a tecnologia marcou um importante ponto
de mudança na história da Escola de Frankfurt. Após 1960, a influência de
Habermas cresceu ao mesmo tempo em que a de Marcuse declinava e a Teoria Crítica
adotava uma posição bem menos utópica. Recentemente tem havido um
renascimento da crítica à tecnologia bastante radical no movimento ambiental e
por influência de Foucault e do construtivismo. Este artigo instaura um novo
olhar ao debate original a partir desses
desenvolvimentos recentes. Ao mesmo tempo que muitos dos argumentos de Habermas
permanecem convincentes, sua defesa da modernidade parece agora conceder demais
às exigências da tecnologia autônoma. Seu quadro essencialista da tecnologia
como aplicação de uma forma puramente instrumental da racionalidade não-social
é menos plausível após uma década de pesquisas históricas sobre os estudos
tecnológicos. Este artigo argumenta que Marcuse tinha razão ao afirmar que a
tecnologia é socialmente determinada, mesmo que não tenha tido êxito ao
defender seu insight. O artigo tenta chegar a uma nova abordagem da crítica
à tecnologia ao recorrer tanto ao construtivismo quanto à teoria da comunicação
de Habermas. Mostra-se, agora, a essência da tecnologia como histórica e
reflexiva, à semelhança de outras instituições sociais. Por ser uma instituição,
sua racionalidade sempre se implementa em formas marcadas pelos valores e
sujeitas à crítica política.
Nesse ensaio,
comparo os pontos de vista de Marcuse e de Habermas sobre a tecnologia e
proponho uma alternativa que combina elementos de ambos. É possível tal síntese
porque os dois pensadores provêm de duas tradições de crítica diferentes,
mas complementares. No entanto, como veremos, nenhum deles sai ileso quando
confrontados.
A própria crítica
da tecnologia caracteriza a Escola de Frankfurt e, de maneira especial, suas
lideranças, Adorno e Horkheimer. Na Dialética do Esclarecimento
(1972), argumentam que a instrumentalidade é, em si mesma, uma forma de
domínio, que, ao controlar os objetos, viola-lhes a integridade, suprimindo-os e destruindo-os. Se
assim for, então a tecnologia não é neutra e seu uso já implica uma tomada
de posição de valor.
A crítica da
tecnologia como tal é tema comum não apenas na Escola de Frankfurt mas também
em Heidegger (1977), Jacques Ellui (1964) e numa multidão de críticos sociais
que poderiam ser descritos, de maneira rude, como tecnófobos. Geralmente este
tipo de crítica é posto num quadro especulativo. A teoria da tecnologia de
Heidegger baseia-se numa compreensão ontológica do ser; o mesmo papel
representa para a Escola de Frankfurt uma teoria dialética da racionalidade.
Estas teorias radicais não são totalmente convincentes, mas têm a utilidade
de oferecerem um antídoto contra a fé positivista no progresso e para colocar
sob exame a necessidade de estabelecer limites à tecnologia. No entanto, são
exageradamente indiscriminadas em sua condenação da tecnologia para que possam
orientar esforços de reformas. A crítica da tecnologia como tal normalmente
desemboca da esfera técnica para a arte, para a religião ou para a natureza.
A reforma da
tecnologia é preocupação de uma segunda abordagem a que chamarei de crítica
projetiva. A crítica projetiva sustenta que os interesses sociais ou os
valores culturais influenciam a concretização dos princípios técnicos. Para
alguns críticos, são os valores cristãos ou machistas que nos dão a impressão
de que “conquistamos” a natureza, uma crença que aparece em projetos técnicos
ecologicamente mal formados; para outros, são os valores capitalistas que
tornaram a tecnologia um instrumento de dominação do trabalho e exploração
da natureza. ( White: 1972; Merchant: 1980; Braverman: 1974)
Estas teorias
algumas vezes se generalizam em versões da crítica da tecnologia como tal.
Nesse caso, sua relevância como projeto se perde por uma condenação
essencialista de toda e qualquer mediação técnica. Mas, quando a tentação
essencialista é evitada e a crítica fica restrita à nossa tecnologia,
esta abordagem promete um futuro técnico radicalmente diferente baseado em
diferentes projetos que corporificam um espírito diferente. Nesse ponto de
vista, a tecnologia é social da mesma maneira que a lei ou a educação ou a
medicina porque é igualmente influenciada por interesses e processos públicos.
Críticos do processo de trabalho fordista e ambientalistas têm debatido
projetos técnicos nesses termos há vinte e cinco anos (Hirschhorn: 1984;
Commoner: 1971). Mais recentemente, esta visão tem encontrado amplo suporte empírico
na sociologia da ciência e na tecnologia construtivistas.
Embora seja freqüentemente
visto como um tecnófobo romântico, Marcuse pertence a este campo. Ele
argumenta que a razão instrumental é historicamente contingente e, assim,
deixa marcas na ciência e na tecnologia
modernas. Cita a linha de montagem como exemplo, mas
seu objetivo não é opor-se a qualquer projeto específico e, sim, à
estrutura de época da racionalidade tecnológica que, ao contrário de
Heidegger e Adorno, considera mutável. Argumenta que poderia haver formas da
razão instrumental diferentes das produzidas pela sociedade de classes. Um novo
tipo de razão instrumental poderia gerar uma nova ciência e novos projetos
tecnológicos livres das características negativas de nossas atuais ciências e
tecnologias. Marcuse é um advogado eloqüente desta posição ambiciosa, mas
hoje a noção de uma transformação da ciência sob inspiração metafísica
encontra audiência cada vez menor e é alvo de total descrédito.
Habermas oferece
uma versão modesta e desmistificada da crítica da tecnologia como tal. A ação
instrumental, que inclui a ação técnica, tem certas características que se
revelam apropriadas em algumas esferas da vida e inapropriadas em outras. A
abordagem de Habermas implica que em sua própria esfera a tecnologia é neutra,
mas que fora desta esfera causa as várias patologias sociais que são os
problemas principais das sociedades modernas. Embora esta posição seja
fortemente combatida, a idéia de que a tecnologia é neutra, mesmo com as
limitações que Habermas levanta, é lembrança do instrumentalismo ingênuo
que foi posto de lado pelo construtivismo.
A questão a que
me refiro aqui é: o que podemos aprender com estes dois pensadores sob o
pressuposto de que não somos nem metafísicos nem instrumentalistas e que
rejeitamos tanto uma crítica romântica da ciência quanto a neutralidade da
tecnologia ?
Na discussão
que se segue, trabalho a argumentação em três fases. Começo com a crítica
que Habermas faz a Marcuse em “Técnica e ciência enquanto ideologia”[1]
(1970), locus clássico
deste debate. Depois considero a apresentação mais profunda de temas similares
em “Teoria da ação comunicativa” (1984-1987) quando ele reformula o
problema em termos weberianos. É evidente que Marcuse não poderia replicar a
tais argumentos, logo meu procedimento é anacrônico, mas tentarei ao máximo
imaginar como ele poderia ter respondido e para isso posso usar seus argumentos
quando critica Weber. A seguir, discutirei aspectos da teoria de Habermas que
podem ser reconstruídos para considerar a crítica de Marcuse que estamos
discutindo. Por fim, formulo minha proposta de
abordagem alternativa.[2]
II – DE “ESPERANÇAS SECRETAS” À NOVA SOBRIEDADE
Marcuse acompanha Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento[3]
ao argumentar que tanto a natureza interna quanto a externa são
suprimidas na luta pela sobrevivência que ocorre na sociedade de classes. Para
evidenciar peso crítico, esta posição precisa implicar, se não uma unidade
original entre o homem e a natureza, pelo menos a existência de algumas forças
naturais congruentes com as necessidades humanas e que foram sacrificadas no
curso da história. Como seus colegas da Escola de Frankfurt, Marcuse acredita
que tais forças se manifestam na arte. Mas, hoje em dia, até mesmo a consciência
do que se perdeu no desenvolvimento da civilização tem sido, em grande medida,
esquecido. O pensamento técnico tem tomado de assalto toda esfera de vida, relações
humanas, políticas e assim por diante.
Embora A ideologia da sociedade
industrial [4]
(1964) seja freqüentemente comparada à Dialética do esclarecimento, é
bem menos pessimista. Ao introduzir uma visão mais esperançosa, Marcuse parece
influenciado por Heidegger, embora não admita tal influência, muito
provavelmente por suas profundas divergências políticas. Em termos
heideggerianos, Marcuse propõe uma nova abertura do ser por uma transformação
revolucionária das práticas básicas. (Dreyfus: 1995). Isto conduziria a uma
mudança na própria natureza da instrumentalidade que seria fundamentalmente
modificada pela abolição da sociedade de classes e por seus associados princípios
de funcionamento. Seria possível criar uma nova ciência e tecnologia que
seriam fundamentalmente diferentes, que nos colocariam em harmonia com a
natureza e não em conflito com ela. A natureza seria tratada como outro sujeito
em vez de meras matérias cruas. Os seres humanos aprenderiam a atingir seus
alvos através da realização das potencialidades naturais inerentes em vez
desperdiça-las por interesse por metas a curto prazo, como o poder e o lucro.
A prática estética oferece a Marcuse um modelo de instrumentalidade
transformada, diferente da “conquista”
da natureza que caracteriza a sociedade de classes. A vanguarda dos inícios
do século XX, especialmente os surrealistas, parece ser a fonte desta idéia.
Como eles, Marcuse acreditava que a separação da arte e vida cotidiana poderia
ser transcendida pela fusão da razão e da imaginação. An essay on
liberation (1969) propõe a Aufhebung da arte numa nova base técnica.
Ainda que este programa pareça incrivelmente implausível tem um certo senso
intuitivo. Por exemplo, o contraste entre a arquitetura de Mies van der Rohe e
Frank Lloyd Wright sugere a diferença entre uma tecnologia como manifestação
de uma força incontida e outra que se harmoniza com a natureza, que procura
integrar o humano em seus ambientes.[5]
Habermas não se deixa convencer. Em “Tecnologia e ciência como
‘ideologia’”, ele denuncia as “esperanças secretas”de uma geração
toda de pensadores sociais ¾ Benjamin, Adorno, Bloch, Marcuse ¾ cujo ideal
implícito era a restauração da harmonia entre o homem e a natureza. Ele ataca
a própria idéia de uma nova ciência e uma nova tecnologia como um mito romântico;
o ideal de uma tecnologia baseada na comunhão com a natureza aplica o modelo da
comunicação humana a um domínio onde apenas são possíveis relações
instrumentais. Habermas acompanha o antropólogo Gehlen, para o qual o
desenvolvimento técnico suplementa o corpo e a mente humanos com um dispositivo
após outro. Deste modo, a tecnologia é um projeto genérico, “um projeto”
da espécie humana como
um todo e não de uma certa época histórica determinada como a sociedade
de classes ou de uma classe social específica, como a burguesia.
Em defesa de Marcuse, poderíamos dizer que em nenhum lugar ele afirma que uma
racionalidade técnica qualitativamente diferente e que substituiria uma relação
interpessoal com a natureza viria a substituir a objetividade característica de
toda ação técnica. É Habermas quem usa a expressão “relação fraternal
com a natureza” para descrever as posições
de Marcuse. Marcuse, na verdade, advoga uma relação com a natureza como
um outro sujeito, mas o conceito de subjetividade aqui implicado deve mais à
substância aristotélica do que à idéia
de uma individualidade. Marcuse não recomenda uma conversa com a
natureza, mas, sim, o reconhecimento dela como possuidora de qualidades próprias de legitimidade inerente. Esse reconhecimento
deveria ser incorporado na própria estrutura da racionalidade técnica.
Naturalmente Habermas não negaria que o
desenvolvimento tecnológico sofre influência das demandas sociais, mas isto é
bem diferente da noção de que haja uma variedade de racionalidades técnicas,
como crê Marcuse. Assim Habermas poderia concordar que a tecnologia pode ser
projetada de maneira diferente, por exemplo, sem levar em conta restrições
ecológicas, mas insistiria que permanece essencialmente intocada
por esta ou aquela realização específica. A tecnologia, em resumo, sempre será
não-social, objetivando a relação com a natureza, orientada para o êxito e
para o controle. Marcuse argumentaria, ao contrário, que a verdadeira essência
da tecnologia está em jogo na reforma do sistema industrial moderno.
De qualquer jeito, Habermas não desconsideraria Marcuse, que, sem dúvida,
exerceu uma influência considerável sobre ele. De fato, ele encontra no
conceito de unidimensionalidade a base para uma crítica muito melhor da
tecnologia do que aquela que rejeita. Trata-se de uma versão de Marcuse quanto
à tese da tecnocracia segundo a qual há uma tendência para administração
total nas sociedades avançadas. Desenvolveu esta idéia em termos da
sobre-extensão dos modos técnicos de pensar e agir. Para Habermas, isto
implica a necessidade de limitar a esfera técnica de modo a restaurar a
comunicação em seu lugar adequado na vida social.
Paradoxalmente, embora o germe da famosa “tese da colonização”
de Habermas pareça derivar, no mínimo, parcialmente da crítica da
tecnologia por Marcuse, a própria tecnologia some da equação habermasiana
neste ponto do tempo e nunca mais reaparece. Como mostrarei, a teoria de
Habermas poderia acomodar uma crítica da tecnologia em princípio, mas a Teoria
da ação comunicativa nem sequer menciona a palavra. Este descuido
relaciona-se com seu tratamento da tecnologia como neutra em sua própria
esfera. A tese da neutralidade obscurece as dimensões sociais da tecnologia na
base da qual uma crítica poderia desenvolver-se.
Qual é o resultado deste primeiro encontro? A despeito dos problemas de sua
posição, Habermas sai-se melhor. As posições de Marcuse foram esquecidas no
final da década de 70 e 80. Com certeza, havia algo certo com a crítica de
Habermas, mas também contava com um contexto histórico favorável. Este
contexto foi a retirada das esperanças utópicas nas décadas de 70 e 80, uma
espécie de neue Sachlichkeit, ou “nova sobriedade” . As visões de
Habermas adaptavam-se a uma época em que domesticávamos nossas aspirações.
Habermas considera os radicais da década de 60 antimodernos ao mesmo tempo em
que define sua propria posição como “modernidade inconclusa”. Assim, A
teoria da ação comunicativa desenvolve
uma argumentação implícita contra Marcuse e a New Left em nome da
modernidade redimida.
Farei aqui um resumo de uma importante versão do argumento de Habermas que
explicarei na Tabela I (Figura 4 de Habermas), extraída de A teoria da ação
comunicativa (1984, 1987: I, 238).[6]
Na parte superior, Habermas relacionou os três “mundos”
dos quais participamos como seres humanos, o mundo objetivo das coisas, o
mundo social das pessoas, o mundo subjetivo dos sentimentos. Nós nos alternamos
constantemente entre os três mundos em nossa vida cotidiana. Na parte lateral,
relacionamos as “atitudes básicas” que tomamos quanto aos três mundos: uma
atitude objetivante quando tratamos com as coisas, ou pessoas e sentimentos como
coisas; uma atitude normativo-conformativa que os vê em termos de obrigação
moral; e uma atitude expressiva que os trata de maneira emotiva. Combinando as
atitudes básicas e os mundos teremos nove relações com o mundo. Habermas
segue Weber ao defender que relações com o mundo só podem ser racionalizadas
quando admitem diferenciação clara e podem ser feitas sobre as realizações
do passado numa seqüência de desenvolvimento progressivo. A modernidade
baseia-se precisamente nestas relações mundo racionalizáveis. Aparecem nas
caixas duplas: racionalidade cognitivo-instrumental, racionalidade prático-moral
e racionalidade prático-estética.
TABELA
1
Dos três domínios possíveis de racionalização, o mundo capitalista
só tem permitido
desenvolvimento integral à relação objetivante aos mundos objetivo e social,
relação que produz a ciência, a
tecnologia, os mercados e a administração. A conclusão de Habermas é que os
problemas da modernidade capitalista derivam dos obstáculos que coloca à
racionalização da esfera prático-moral.
Há, na tabela, três
“X”s (em 2.1, 3.2 e 1.3)
na tabela que se referem às relações mundo não racionalizáveis. Duas dessas
nos interessam. A relação 2.1 é a normativo-conformativa ao mundo objetivo,
ou seja, a relação fraterna com a natureza. Embora não mencionado
explicitamente aqui, Marcuse insere-se na caixa 2.1.
Outro “X” está colocado em 3.2, a relação expressiva com o mundo
social, boêmia, contracultura, exatamente os locais em que Marcuse e seus
aliados da New Left buscam alternativas à modernidade. Em suma, os anos da década 1960
colocaram-se sob os “X”-s em zonas de irracionalidade que são incapazes de
contribuir para a reforma de uma sociedade moderna. De maneira mais precisa do
que seu ensaio anterior sobre “Tecnologia e ciência enquanto ideologia”
esta imagem explica porque Habermas rejeita a crítica radical que Marcuse faz
à tecnologia.
Como Marcuse teria respondido a tais afirmativas? Poderia ter usado os
argumentos contra a neutralidade da ciências e da tecnologia que desenvolveu em
seu ensaio sobre “Industrialização e capitalismo no trabalho de Max Weber”
(1968) e em Ideologia da sociedade industrial. Tanto em Habermas quanto
em Weber, a racionalidade técnico-científica é não-social, neutra e formal.
Por definição exclui o social (que seria 1.2). É neutra porque representa um
interesse amplo pela espécie, um interesse cognitivo-instrumental que ignora os
valores específicos de cada subgrupo da espécie humana. E é formal como
resultado do processo de diferenciação pelo qual abstrai-se dos vários conteúdos
a que serve de mediação. Em resumo, a ciência e a tecnologia não reagem
essencialmente aos interesses sociais ou à ideologia mas apenas ao mundo
objetivo que representam em termos das possibilidades de compreensão e
controle.
Marcuse apresenta sua concepção de neutralidade da esfera
cognitivo-instrumental no ensaio sobre Weber, quando ele mostra que se trata de
um tipo especial de ilusão ideológica. Concede que os princípios técnicos
podem ser abstraídos de qualquer conteúdo, ou seja, de qualquer interesse ou
ideologia. No entanto, como tais, são meras abstrações. Logo que entram no
real, assumem conteúdo social e histórico específico. A eficiência, para
tomarmos um exemplo particularmente importante, costuma ser definida como proporção
entre entradas e saídas[7].
Tal definição aplica-se tanto a uma sociedade comunista quanto a uma sociedade
capitalista e, até mesmo a uma tribo da Amazônia. Parece, portanto, que a
eficiência transcende a particularidade do social. No entanto, concretamente
quando alguém entra mesmo na situação de aplicar a noção de eficiência,
tem que decidir que tipo de coisas admitem “entradas” ou “saídas”, quem pode oferecer e quem pode adquiri-las e
em quais termos, o que considerar como danos e perdas e assim por diante. Todos
têm sua especificidade social e, assim também o conceito de eficiência em
qualquer aplicação real. Como regra geral, os sistemas formalmente racionais
precisam ser contextua-lizados de maneira prática a fim de serem usados de
fato. Não se trata simplesmente de uma questão de classificar conteúdos
sociais particulares em formas universais, mas envolve a própria definição
daquelas formas que logo que são contextualizadas numa sociedade capitalista,
incorporam valores capitalistas.
Esta abordagem é uma generalização da crítica original de Marx ao mercado.
Ao contrário de muito socialistas contemporâneos, Marx não negava que os
mercados exibem uma ordem racional baseada numa troca igual. O problema com o
mercado não se localiza neste nível, mas concretiza-se historicamente numa
forma que atrela esta troca equivalente com o crescimento implacável do capital
às custas do resto da sociedade. Os economistas podem deixar de lado a tendência
das atuais sociedades de mercado, mas atribuiriam a diferença entre os modelos
ideais e as realidades banais a incidentais “defeitos do mercado”. O que
consideram como um tipo de interferência externa ao tipo ideal do mercado
capitalista Marx considera um aspecto essencial de seu funcionamento. Mercados
em sua forma perfeita são apenas uma abstração de um contexto concreto a
outro no qual empregam tendências que refletem interesses específicos de
classe.
Marcuse adota uma direção similar ao criticar a noção weberiana de
racionalidade administrativa, um aspecto fundamental da racionalização. A
administração no domínio econômico pressupõe
separar os trabalhadores dos meios de produção. Tal separação
eventualmente modela também o projeto tecnológico. Embora Weber chame a
administração e a tecnologia capitalista de racional sem qualquer qualificação,
elas assim são apenas num contexto específico no qual os trabalhadores fazem
seus próprios instrumentos. Esses contextos sociais, no entanto, continuam a
desviar o conceito de racionalidade de Weber por mais que este continue a falar
de um processo universal de racionalização. A defasagem resultante entre a
formulação abstrata da categoria e sua exemplificação é ideológica.
Marcuse insiste na distinção entre racionalidade geral e em sua realizaçào
histórica num processo de racionalização socialmente específico e
concreto. Uma racionalidade “pura” é
uma abstração do processo de vida de um sujeito histórico. Este processo
necessariamente envolve valores que se tornam integrais à racionalidade como
esta se realiza.
Habermas também considera que a teoria da racionalização de Weber confunde
categorias abstratas e instâncias concretas, mas sua crítica difere da de
Marcuse. Habermas argumenta que por trás do processo de desenvolvimento moderno
existe uma estrutura de racionalidade que se realiza de formas específicas
privilegiadas pela sociedade dominante. (cf. Tabela 1, acima) Weber descuidou-se
de movimentos sistemáticos de racionalização potencial e normativa suprimidos
pelo capitalismo e, conseqüentemente confundiu os limites do capitalismo com os
limites da racionalidade como tal.
Porque Habermas não enfrenta a explicação de Weber sobre a racionalização técnica,
ele parece também identificá-la com suas formas especificamente capitalistas.
Marcuse, ao contrário, ataca a própria compreensão que Weber tem da
racionalização. O erro de Weber não está simplesmente em identificar um tipo
da racionalização com a racionalização em geral, mas mais profundamente em
negligenciar a influência dos valores sociais sobre toda e qualquer
racionalidade. A explicação de Weber sobre a ciência e a tecnologia como não
sociais e neutras, que Habermas compartilha, mascara os interesses que atuam
sobre sua formulação original e aplicações posteriores. Daí que Marcuse
veria carregado de valores até mesmo o ideal de racionalização geral de
Habermas com seus momentos técnicos e normativos.
Posso imaginar Habermas respondendo que tais problemas são apenas detalhes
sociológicos inapropriados no nivel teórico fundamental. Elevá-los a esse nível
é correr o risco de torná-los um
“cavalo de Tróia” numa crítica romântica da racionalidade. A melhor
maneira de conservar o cavalo fora dos muros da cidade sitiada é conservar uma
clara distinção entre principio e aplicação. Do mesmo modo como os princípios
éticos devem ser aplicados se devem atuar na realidade, assim também acontece
com os principios técnicos, econômicos ou políticos. Que as aplicações
nunca correspondam exatamente a princípios não é uma objeção séria para
formular estes em tipos-ideais purificados. Nesse nível essencial, não há
risco de confusão entre propriedades formais de racionalidade como tais e
interesses sociais específicos.
Este conceito formalista da relação entre princípio e aplicação convence
mais na ética do que nos estudos tecnológicos. Princípios éticos formulados
abstratamente a partir de aplicações fornecem critérios para julgar.
Mesmo quando os próprios princípios requerem revisão para retirada de
deficiências em sua formulação costumeira, a revisão ocorre em nome dos
princípios. Assim critica-se uma compreensão deficiente da igualdade do ponto
de vista de uma compreensão mais adequada. Mas os
“princípios” subjacentes
às tecnologias são mais instrumentais do que normativos e, portanto, somente
podem corrigir lacunas instrumentais.O cerne da teoria de Marcuse é mostrar que
estes princípios são insuficientes por eles mesmos para determinar os
contornos de uma forma técnica de vida específica. Para tanto, outros fatores
que nada têm a ver com a eficiência precisam entrar na equação.
Na verdade, esta teoria é uma crítica da racionalidade e não uma regressão
romântica ao imediatismo. Ao contrário, mudanças técnicas implementadas no
local de trabalho para intensificar o poder gerencial são justificadas quanto
à eficiência no sentido de que podem aumentar o retorno de capital mesmo que
tornem o trabalho mais difícil e doloroso. A dimensão moral desse resultado é
abafada e não se revela pela aplicação de normas técnicas.
Na verdade, o uso de álibis técnicos para justificar o que na realidade são
relações de força é um acontecimento comum em nossa sociedade. De maneira típica,
invocam-se considerações de eficiência para remover temas de julgamentos
normativos e de discussão pública. Até a formulação de normas morais é
corrompida onde estão arbitrariamente excluídas dos domínios significativos
da vida. Assim o fracasso de nossa sociedade em julgar ambientes de trabalho
conforme as normas da democracia e do respeito para com as pessoas faz com que
nossa compreensão dessas normas retrocedam e as torna vazias e
“formalistas” no mau sentido. O central é, então, que a tese da
neutralidade sustenta um tipo de mistificação mais do que de formalismo ético,
um tipo que, por vezes, envolve abusos formalistas e que, de qualquer maneira,
bloqueia o diálogo público mediante álibis técnicos.
A crítica da ciência e da tecnologia de Marcuse foi apresentada num contexto
especulativo, mas sua maior afirmativa ¾ o caráter social dos
sistemas racionais ¾
é um lugar comum da recente pesquisa construtivista da ciência e da
tecnologia. A noção de subdeterminação é central nessa abordagem (Pinch
& Bijker, 1984). Se dispomos de soluções puramente técnicas para um
problema, então a escolha entre elas torna-se tanto técnica quanto política.
As implicações políticas da escolha serão incorporadas em certo sentido na
tecnologia.
Embora não seja um construtivista, Langdon Winner (1986) oferece uma
exemplificação especialmente clara das implicações políticas da tese de
subdeterminação. Os projetos de Robert Moses para uma via expressa em Nova
Iorque, anos atrás, incluiam uma grande especificação para viadutos que eram
um pouco baixo demais para os ônibus que circulavam na cidade. Desta maneira,
as pessoas pobres que moravam em Manhattan e que dependiam do transporte público
ficariam, portanto, impedidas de visitar as praias de Long Island. Desse modo,
um simples número num desenho de engenharia continha um desvio racial e de
classe social. Poderíamos mostrar coisas similares com muitas outras
tecnologias, a linha de montagem, por exemplo, que exemplifica as noções
capitalistas de controle da força de trabalho. Corrigir tais desvios não nos
remeteria de volta a uma tecnologia pura e neutra, mas simplesmente alterariam
seu conteúdo valorativo numa direção menos visível para nós porque mais de
acordo com nossas próprias preferências.
O próprio Habermas, certa vez, focalizou este fenômeno. Num ensaio antigo,
argumentou que a ciência não pode nos ajudar a decidir entre tecnologias
funcionalmente equivalentes, e que os valores podem interferir (Habermas, 1973:
270- 271). Mostrou que a aplicação da teoria da decisão não fornece critérios
científicos de escolha, mas apenas introduz diferentes preconceitos de valor.
Mesmo em “Tecnologia e ciência como ‘ideologia’”, Habermas reconhece
que “interesses sociais ainda determinam a direção, as funções e o ritmo
do progresso técnico” (Habermas: 1970, p. 105). Ele não explica como esta
afirmação se harmoniza com sua crença, expressa no mesmo ensaio, de que a
tecnologia é um “projeto”
da espécie humana “como um todo” (Habermas: 1970, p. 87). Mesmo esta
inconsistência (contornável, não há dúvida) parece desaparecer em trabalhos
posteriores quando a tecnologia é definida como não-social.
Mas, com certeza, a posição anterior estava certa. Se isto é verdade, então
o que Habermas chama de relação fraterna com a natureza (2.1), não deveria
ter um “X” por cima. Se 1.1, isto é, a relação objetiva com o mundo
objetivo já é social, a distinção entre ele e 2.1
é suavizada. A pura instrumentalidade não se opõe às normas sociais já
que toda atitude tem uma dimensão social. A objetividade do tipo envolvido na
pesquisa científica natural certamente seria diferente da relação com a
natureza que Marcuse recomenda, mas num eixo diferente daquele
identificado por Habermas. A questão não é, como Habermas pensa, se
uma filosofia teleológica da natureza faz algum sentido hoje: relaciona-se com
nossa autocompreensão como sujeitos da ação técnica.
Este é o argumento de Steven Vogel ao mostrar que a Tabela de Habermas omite um
domínio óbvio das relações normativas com o mundo objetivo: o ambiente
construído. A questão do que construir e de como construir nos compromete com
julgamentos normativos referentes ao estado factual das coisas. Embora não haja
uma ciência de tais julgamentos, eles, pelo menos, admitem racionalização do
mesmo modo que os julgamentos estéticos classificados por Habermas como 3.1 na
Tabela (Vogel, 1996,p.388). Assim podemos aqui dar um conteúdo racional à
demanda de Marcuse por uma nova relação com a natureza.
A natureza seria tratada como outro assunto em que os humanos se responsabilizam
pelos materiais que transformam ao criar o ambiente construído. Nada há nesta
proposição que ofenda o espírito da ciência moderna. Ao contrário, para
realizar este programa faz-se necessária a ciência. Do ponto de vista metodológico,
o caso é similar ao da medicina, que envolve uma relação objetiva com o corpo
humano objetivado.
Qual é o resultado desta segunda fase do debate? Acho que Marcuse sai vitorioso
nele. Não mais estamos na “nova sobriedade” da passada década de 80, mas
entramos nos anos 90, que são construtivistas e suas posições retornam bem
mais plausíveis do que há vinte ou trinta anos. Mas ainda restam problemas na
posição de Marcuse. Mesmo que a concepção de tecnologia de Habermas caia
diante do contra-ataque construtivista, mantém-se sua rejeição da metafísica
romântica. Em vez de simplesmente voltarmos às formulações iniciais de
Marcuse, talvez partes de sua teoria crítica da tecnologia possam ser reconstruídas
de maneira a que não mais dependa de uma base especulativa. Será que
precisamos mesmo de uma nova ciência para acolher a teoria de Frank Lloyd
Wright em vez da tecnologia de Mies van der Rohe ?
Será que não se poderia trabalhar por uma transformação gradual,
usando os princípios técnicos existentes mas reformados, modificados,
aplicados de maneira um pouco diferente? O movimento ecológico tem nos mostrado
que esta é uma abordagem prática a um processo de longa duração de mudança
tecnológica.
Na parte restante deste ensaio, proponho-me a reformular o projeto de crítica
de Marcuse dentro de uma versão modificada da teoria
da comunicação de Habermas para nela incluir a tecnologia.
IV - REFORMULANDO A TEORIA DOS
MEIOS
A teoria dos meios de Habermas dá
a base para uma síntese. Esta teoria é projetada para explicar a emergência
nas sociedades modernas de “subsistemas” diferenciados e que se baseiam em
formas racionais, como o intercâmbio, a lei e a administração. Esses meios
permitem que o indivíduo coordene seu comportamento enquanto persegue êxito
individual numa atitude instrumental diante do mundo. A interação guiada pelos
meios é uma alternativa à coordenação do comportamento social através da
compreensão comunicativa, através da obtenção de crenças compartilhadas no
curso de intercâmbios mediados linguisticamente. Resumindo grosso modo, o
objetivo de Habermas é corrigir o equilíbrio
entre estes dois tipos de coordenação racional, ambas requeridas por
uma sociedade moderna complexa.
O conceito de meios é generalizado a partir de trocas monetárias ao longo de
linhas que Parson foi o primeiro a propor. Habermas argumenta que apenas o poder
se assemelha bastante ao dinheiro a ponto de qualificar-se como meio integral.
Juntos, o dinheiro e o poder “adulteram
e justificam” a vida social ao organizar a interação por comportamentos
objetivantes. As compreensões comuns e os valores compartilhados desempenham um
papel diminuto no mercado, porque o mecanismo do mercado
dá um resultado reciprocamente satisfatório e indiscutível. Algo
similar acontece com o exercício do poder administrativo.
É importante não exagerar as concessões de Habermas à teoria sistêmica.
[8]
Em sua formulação, os meios não eliminam totalmente a comunicação, apenas a
necessidade de “ação comunicativa”. Este termo não se refere à faculdade
geral de usar símbolos para transmitir crenças e desejos, mas à forma
especial de comunicação em que os sujeitos buscam mútua compreensão (Habermas,
1984, 1987: I, 286). A comunicação que se refere aos meios é bastante
diferente. Consiste em códigos altamente simplificados e expressões ou símbolos
que objetivam não a compreensão mútua, mas o desempenho vitorioso. A coordenação
da ação é um efeito da estrutura da mediação mais do que uma intenção
consciente por parte dos sujeitos.
Eis a base do contraste que percorre as páginas da
“A teoria da ação comunicativa” entre “sistema”, instituições
racionais regulada pelos meios, e “o mundo da vida”, a esfera das interações
comunicativas cotidianas. A patologia central das sociedades modernas é a
colonização do mundo da vida pelo sistema. O mundo da vida contrai-se enquanto
o sistema expande-se nele “adulterando e justificando” as dimensões da vida
social que deveriam ser lingüisticamente mediadas. Habermas acompanha Luhmann
ao chamar isto de “tecnificação do mundo da vida”.
A teoria dos meios permite que Habermas ofereça uma explicação muito mais
clara das tendências tecnocráticas das sociedades modernas do que a “Dialética
do esclarecimento” ou a “Ideologia da sociedade industrial: o homem
unidimensional”. Usa como estratégia aqui a mesma que empregou antes para
criticar Marcuse: limitar a esfera instrumental, limitá-la de tal maneira que a
ação comunicativa possa desempenhar seu papel. Mas, surpreendentemente, mesmo
protestando contra a “tecnificação do mundo”, Habermas quase não menciona
a tecnologia. Isto me parece descuido óbvio. Com certeza, a tecnologia também
organiza a ação humana enquanto minimiza a necessidade da linguagem.
Há uma forte objeção a esta posição, a saber, que a tecnologia envolve relações
causais com a natureza enquanto os demais meios são essencialmente sociais. Os
códigos que governam o dinheiro e o poder são convencionais, ao passo que os
que governam a tecnologia parecem carecer de conteúdo comunicativo. Ou, em
outras palavras, a tecnologia “alivia” o esforço físico mas não o
comunicativo.
Mas, na verdade, a tecnologia atua nos dois níveis.Há vários e diferentes
tipos de conteúdo comunicativo. Algumas tecnologias, como automóveis e
escrivaninhas comunicam o status de seus proprietários (Forty, 1986);
outras, como os cofres, comunicam obrigações legais; a maioria das tecnologias
tambem comunicam através das interfaces pelas quais são manipuladas. Um
programa de computação, por exemplo, transmite a concepção do projetista
quanto aos problemas a que o programa se destina e, ao mesmo tempo, também
ajuda a resolver tais problemas (Suchman, 1987). Em qualquer sistema de
transporte, a tecnologia pode ser vista organizando um grande número de pessoas
sem discussões: precisam apenas seguir as regras e o mapa. E, ainda, os
trabalhadores numa fábrica bem projetada podem encontrar suas posições de
maneira quase que por combinações automáticas graças à estrutura do
equipamento e dos edifícios ¾
trata-se de uma ação coordenada ¾
sem muita interação lingüística.
Na verdade, é bem improvável sugerir, como Habermas faz, pelo menos por
implicação, que pode-se descrever completamente a coordenação de ação nas
esferas racionalizadas da vida social simplesmente pelas referências do
dinheiro e do poder. Com certeza, ninguém no campo da teoria administrativa
apoiaria a visão de que uma combinação de incentivos monetários e regras
administrativas seria suficiente para coordenar a atividade econômica. O
problema da motivação é bem mais complexo e, a não ser que a racionalidade técnica
do trabalho consiga unir de maneira harmoniosa os trabalhadores para a obtenção
dos mesmos objetivos, a organização de suas atividades não pode ser restrita
apenas a uma questão de regras.
Reduzir a tecnologia simplesmente a uma função causal é perder os resultados
de uma geração de pesquisa pela sociologia da tecnologia. Para provar o que
afirmo, seria um engano ignorar a importância de uma compreensão dos
mecanismos causais para o controle do comportamento humano na esfera
administrativa: a frase “tecnologias sociais” é bem escolhida. Mas se não
se pode reduzir a tecnologia à causalidade natural, por que exclui-la da lista
dos meios a que se assemelha em tantos aspectos? Naturalmente, trata-se de algo
bem diferente do dinheiro, meio paradigmático, mas, se a analogia se aplica
vagamente ao poder, argumentaria que também pode ser estendida à tecnologia.
Na Tabela 2 (figura de Habermas 37), quando Habermas define o dinheiro e o poder
como meios, relacionei a tecnologia com eles e encontrei uma aproximação com
cada um dos termos que emprega para descrevê-los (1984, 1987: II, 274). Não
vou rever a Tabela toda, mas me concentrar em três das funções mais
importantes.
Primeira: consideremos um
“valor instrumental generalizado”. No caso do poder é sua efetividade, e a
chamo de produtividade no caso da tecnologia. Os que se encarregam das mudanças
tecnológicas (que não são necessariamente técnicos) introduzem recursos e
comportamentos associados entre os membros da comunidade que os aliviam tanto do
nível comunicativo quanto do físico. Isto gera dois tipos de valor: primeiro,
o comando ampliado de recursos dos indivíduos equipados e coordenados, e,
segundo, o comando ampliado de pessoas ganha os que intermediam o processo técnico.
Tal autoridade técnica assemelha-se ao poder político mas não pode ser a ele
reduzido. Nem mesmo é tão vago quanto a influência e prestígio, meios
sugeridos por Parsons e que Habermas
não mantém. Creio que é sui generis.
Segunda: cada um desses meios
apresenta uma “reivindicação nominal”. Com o dinheiro trata-se de uma
troca de valor, isto é, o dinheiro demanda um equivalente; o poder
coloca decisões obrigatórias que exigem obediência; e a tecnologia
gera o que chamo, como o faz Bruno Latour (1992) “prescrições”, regras de
ação que demandam aceitação. Aceitar instruções para operar uma máquina
difere tanto de obedecer a ordens políticas quanto de aceitar uma troca de
equivalentes no mercado. Isto se caracteriza por um código específicamente próprio.
A comunicação que define, aquela que corresponde mais intimamente aos códigos
simplificados do dinheiro (comprar, não comprar) e do poder (obedecer,
desobedecer) é pragmaticamente a ação certa ou a ação errada.
Terceira: existe a coluna de sanção,
que Habermas chama de “retaguarda de reserva”. Ao reivindicar que o dinheiro
tem reserva em ouro, Habermas salta sobre vinte e cinco anos da história econômica,
mas é lógico que o valor monetário deva referir-se a algo em que as pessoas
confiam. O poder requer meios de força; no caso da tecnologia, as conseqüências
naturais do erro têm uma função similar, freqüentemente mediada por sanções
organizacionais de alguma espécie. Se você recusa as normas técnicas,
digamos, por dirigir o carro pelo lado errado da rua, você arrisca a vida. Você
sobrecarrega aqueles que seriam auxiliados por sua adesão e que agora precisa
gastar tempo ao fazerem sinais que evitem a batida. Fracassando nessa
empreitada, a natureza assume sua marcha e o acidente vem reforçar as regras
consolidadas na lei e na configuração técnica das rodovias e dos carros.
Tabela 2
Se a tecnologia for incluída na teoria dos meios, os limites que Habermas
pretende colocar em torno do dinheiro e do poder lhe serão também estendidos.
É certo que faz sentido argumentar que a mediação técnica é adequada em
algumas esferas e inadequada em outras.
No entanto, tem-se objetado que, a despeito de algumas similaridades quanto ao
dinheiro e ao poder, a tecnologia está tão integralmente entretecida
com eles e com o mundo da vida que desafia uma simples estratégia restritiva.
Faz-se melhor compreender como mediação pela qual penetra no mundo da vida do
que exatamente como um meio. Invadir um domínio da vida com a tecnologia acaba
por abri-lo ao controle político e econômico; a tecnologia serve ao sistema de
expansão sem que seja em si mesma um meio[9].
Mas a tecnologia é exclusivamente mesclada? Tal objeção confunde dois níveis
da teoria do meio. Habermas distingue os meios como tipos-ideais, mas na prática,
naturalmente, o dinheiro e o poder estão constantemente misturados. Com o
dinheiro pode-se obter o poder, com o poder pode-se obter o dinheiro; o dinheiro
é um meio de poder e o poder é um meio para obter dinheiro. A tecnologia não
é diferente. Pode facilmente distinguir-se do dinheiro e do poder como
tipo-ideal, embora no nível empírico esteja misturada a eles do mesmo modo
como eles se misturam entre si. Todos os meios são mediações nesse sentido,
todos meios servem como meio uns aos outros.
Considerações históricas também trazem argumentos nesse sentido. Em cada
fase ou tipo do desenvolvimento moderno, um ou outro meio joga um papel
mediador, facilitando o avanço geral do sistema. A descrição de Polanyi do
mercado predador oferece um modelo de expansão sistêmica orientada pelo
mercado (Polanyi, 1957), a discussão de Foucault das origens da sociedade
disciplinar apóia-se na “propagação capitar” das técnicas (Foucault,
1977). O poder do estado é o mediador da extensão do mercado e das relações
técnicas em mundos de vida tradicionais na maioria das teorias da modernização
japonesa e russa.
O jurídico representa um papel mediador no estado do bem-estar contemporâneo,
segundo a “Teoria da Ação Comunicativa”. Habermas sustenta que a lei é
tanto um “meio complexo” quanto uma “instituição”. Como meio complexo,
a lei regula adequadamente as funções do sistema. Uma sociedade que faz
contratos obviamente precisa da lei e de formas coercitivas. Mas, como instituição,
a lei também regula funções do mundo da vida, por exemplo através da legislação
do bem-estar e da família. Em certa medida, isto é necessário, mas regular o
mundo da vida pode trazer conseqüências patológicas: a comunicação pode ser
bloqueada ou corrompida, introduzir desconfiança, e assim por diante. Aí a lei
se torna um instrumento de colonização do mundo da vida pelo sistema.
Nesses sentidos, a tecnologia oferece um paralelo exato à lei. Ela, também,
faz a mediação entre o sistema e as funções do mundo da vida. Nesse sentido,
não existem objeções à aplicação da tecnologia ao mundo da vida. Mas a
aplicação da tecnologia às funções do mundo da vida às vezes dá origem a
patologias. Considere, por exemplo, a ofensiva médica contra a amamentação
pelo peito nas décadas de 1930 e 1940. Nessa instância, um aspecto da vida
familiar foi invadida pela tecnologia numa crença equivocada de que os produtos
fornecidos pelas indústria eram mais saudáveis do que o leite do peito. Essa
mediação técnica complicou sem necessidade os cuidados com a infância ao
mesmo tempo que abria grandes mercados. O amplo emprego de produtos químicos em
países sem depósitos naturais de água pura espalha a diarréia infantil, o
que, por sua vez, requer tratamentos médicos ¾
uma outra intromissão da tecnologia nos cuidados com a criança. Eis uma clara
intervenção patológica da tecnologia no mundo da vida.[10]
Esta seção
sugeriu uma maneira de desenvolver uma teoria crítica da tecnologia numa base
teórica de comunicação. Em vez de ignorar a crescente tecnificação das
sociedades avançadas, pode-se submetê-la à análise e à crítica. Espero que
esta abordagem possibilite que a Teoria Crítica retome a discussão
interrompida da tecnologia desde quando ocorreu o debate entre Marcuse e
Habermas que mencionamos.
V - VALOR E RACIONALIDADE
Este tratamento
da tecnologia como um meio melhora a teoria da ação comunicativa de Habermas
sem apagar seus contornos. No entanto, sugere alguns problemas teóricos mais
profundos que põem sua estrutura sob tensão. Quero abordar tais problemas nas
seções finais desse ensaio.
A síntese que
até agora esquematizamos diz respeito apenas à extensão e ao alcance
da mediação instrumental e não ao projeto tecnológico. Isto acontece
porque a teoria sistêmica de Habermas não oferece base para uma crítica à
estrutura interna de qualquer meio. Pode desafiar a super-extensão aos domínios
comunicativos mas não seu projeto no domínio de sua própria competência.
Nada em sua teoria corresponde à crítica que Marcuse
levanta à tese da neutralidade. Mas é difícil ver como uma teoria crítica
da tecnologia pode evitar questões. Será possível retomar o ponto essencial
da crítica de Marcuse sem que tenhamos que defender as controvertidas
pressuposições com as quais ele a defende? Argumentarei que este objetivo pode
ser atingido mas apenas se abandonarmos tanto a especificidade da abordagem
quase heideggeriana de Marcuse e a noção de racionalidade formal que Habermas
extraí de Weber.
Pretendo fazer
uma crítica da instrumentalidade em dois níveis. Num nível, acompanharei
Habermas e sua crítica da tecnologia como tal, sustentando que os meios têm
certas características gerais que qualificam sua aplicação. Isto justifica
que se busque limites à sua extensão. Mas um segundo nível será também
necessário porque o projeto dos meios é desenhado pelos interesses hegemônicos
da sociedade a que servem. Mercados, administrações, recursos técnicos têm o
que chamarei de “desvio à implementação”: a forma em que se realizam
incorpora determinadas opções de valor. Tais desvios do projeto deixam uma
marca sobre os meios até mesmo naqueles domínios em que adequadamente regulam
as situações. Portanto, a crítica não deve parar nas bordas do sistema, mas
precisa neles ingressar com profundidade.
Esta abordagem
crítica em dois níveis é consistente ? Pode a crítica no segundo nível
reconciliar-se com a distinção habermasiana entre mundo do sistema e mundo da
vida? Borrar os limites entre os dois é questionar a tese da colonização, o
que diminui o potencial crítico da teoria de Habermas. Não mais podemos
protestar contra a extensão da pura racionalidade tecnológica a domínios
regulados pela comunicação se, logo de início, já não houver diferença
fundamental entre sistema e mundo da vida.
Esta objeção
relaciona-se com a questão ede se determinar se a distinçào entre sistema e
mundo de vida é analítica ou real. Axel Honneth (1991), dentre outros, opõe-se
à identificação habermasiana dos termos desta diferenciação, ou seja, ao
estado, à família, à escola. Na verdade, não há linha institucional clara
entre sistema e mundo da vida. Tanto a produção quanto a família são
constituídos por uma mistura confusa de códigos cognitivos, normativos e
expressivos, por ação orientada ao êxito e para a ação comunicativa. A
distinção, portanto, é meramente analítica.
Parece-me que
aqui se confundem várias considerações distintas. Com certeza, Habermas tem
razão ao argumentar que há uma diferença fundamental entre contextos
institucionais que são predominantemente configurados pelos mercados ou
burocracias (e, eu acrescentaria, pelas tecnologias) e contextos em que as relações
pessoais ou comunicativas são primárias. Em que pesem os códigos e os motivos
mistos, sem tal distinção não se poderia encontrar qualquer sentido no
processo de modernização.
O problema não
é a distinção em si, mas a identificação de um de seus termos à
racionalidade formal e neutra. A teoria feminista contemporânea, a sociologia
organizacional, a sociologia da ciência e a tecnologia têm demonstrado
abundantemente que tal racionalidde não existe. Nancy Fraser (1987), por
exemplo, mostrou que o alto nível de abstração em que Habermas define suas
categorias serve apenas para mascarar sua realização marcada pelo gênero nas
sociedades concretas.O sistema e o mundo da vida, a produção material e simbólica,
pública e privada, todas essas abstrações escondem distinçòes entre papéis
do macho e da fêmea que existem até na racionalidade que, aparentemente,
é apenas administrativa e política na economia e no estado modernos.
Deixar de ver este fato leva a uma superdimensionalização da centralidade das
patologias da colonização (reificação) e a uma correspondente subavaliação
da opressão dos grupos sociais, tais como o da mulher.
Precisamos de um
jeito de falar sobre normas-projeto do tipo que caracteriza todas as instituições
sem perder a distinção entre sistema e mundo da vida. Proponho aplicarmos o
conceito de “desvio à implementação” para tal propósito. Desvios à
implementação entram nos meios e nas formas específicas dos meios não como
compreensões comunicativas do tipo que caracteriza o mundo da vida. Latour
(1992) chama “delegação” a este tipo de desvio: as normas acabam delegadas
à tecnologia pelo projeto e pela configuração de recursos e sistemas. A noção
de delegação pode ser generalizada aos demais meios, de modo que pode-se falar
de delegação de normas a mercados, a leis etc. As duas formas de ação-coordenação
que Habermas identifica e os correspondentes domínios de sistema e mundo da
vida podem, assim, serem mantidos separados sem a necessidade da noção de pura
racionalidade, pois esta não convence.
Contudo, tanto
quanto posso dizer, esta não é a agenda de Latour. Em vez de reconstruir a noção
de racionalidade deste modo, Latour e seus colegas parecem tentar confundir a
fronteira entre racionalidade e prática cotidiana. Como a microssociologia
construtivista, reduzem a especificidade das funções sistêmicas ao mundo da
vida sem tomar em consideração as macroconseqüências da expansão sistêmica
nas sociedades modernas. Na verdade, Latour
(1991) intitulou um de seus livros “Nunca fomos modernos”. Creio
que se trata de uma hiper-reação à noção de pura racionalidade.
Mesmo no livro de Latour, o sociólogo “não moderno”
acha necessário introduzir substitutos para as distinções
sistema/mundo da vida e moderno/premoderno. Por mais que sejam construídas, não
tem sentido negar as diferenças entre operações racionalizadas pela moderna
tecnologia e modos de ação não tecnológicos. Mas faz sentido, no entanto,
mostrar que, a despeito das diferenças, as operações racionalizadas ainda estão
embebidas de valores.
Exatamente como
a racionalidade sistêmica e a normatividade coexistem nos meios? A charada só parece tão difícil porque nossa concepção de desvio
valorativo está configurado pelos contextos e experiências do mundo da vida.
Pensamos nos valores como enraizados em sentimentos ou crenças, como expressos
ou justificados, como escolhidos ou
criticados. Os valores pertencem ao mundo do “deveria” em contraste com o
mundo do “é”. Naturalmente, esta noção de senso comum sobre os valores
negligencia a realização institucional das normas num consenso objetivado de
fundo que torna a vida social possível. A sociologia organizacional insiste
sobre este ponto e Habermas concorda que as atividades racionalizadas requerem
um fundo normativo compartilhado de algum tipo, por exemplo, consenso sobre o
significado e valor das atividades. No entanto, a questão é mais profunda.
Precisamos saber como instituições baseadas na racionalidade sistêmica faz normas objetivadas nos recursos e práticas, e não
simplesmente em crenças individuais ou pressuposições compartilhadas.
Uma dificuldade
conceitual mais ou menos do mesmo tipo acontece em relação ao tratamento
equitativo aos grupos raciais ou étnicos. Um teste culturalmente enviezado pode
ser administrado corretamente e, no entanto, favorecer deslealmente um grupo às
custas do outro. Em tais casos, o desvio não precisa estar presente na forma
cotidiana de preconceito, nem tratar-se apenas de uma pressuposição de fundo
dos aplicadores do teste. Na verdade, estão realmente ali no próprio teste, e,
contudo, isto não será revelado por nenhum estudo do teste ou das condições
em que é aplicado, pois se trata de um propriedade relacional do teste com seu
contexto social.
Proponho chamar
este tipo de desigualdade “desvio formal”, em contraste com o “desvio
substantivo” que normalmente aparece no mundo da vida.[11]
O desvio formal é conseqüência das propriedades formais da atividade em
desvio, não como escolhas de valores substantivos. No caso de um teste com
desvio cultural, por exemplo, a escolha da linguagem ou das questões
supostamente familiares bastam para enviezar o resultado. Não é preciso uma
intervenção substantiva como a diminuição dissimulada dos membros do grupo
minoritário ou citações que os excluam das posições a que o teste pretende
dar acesso.
O conceito de
desvio formal pode ser generalizado para abranger desvios na implementação de
sistemas tecnicamente racionais. Seus trabalhos internos podem ser descritos
exaustivamente sem qualquer outra referência a valores do que eficiência e
adequação cognitiva; no entanto, seus projetos revelam um conteúdo normativo
implícito quando colocado em seu contexto social.
A teoria crítica
tem lutado para trazer tal conteúdo à consciência desde a crítica marxiana
original quanto à neutralidade do mercado. Muito do que é obscuro e desafiador
em Marx e em marxistas como Marcuse parece originar-se da complexidade dessa crítica.
Não tenho certeza se a teoria da ação comunicativa de Habermas reflete bem
essa complexidade. A noção de uma racionalidade instrumental não social
parece retirar a ação da crítica.
Onde os projetos técnicos incorporam desvios normativos que são tomados como
garantidos e postos fora da discussão, apenas um tipo de crítica que a teoria
de Habermas exclui é que poderia abrir um diálogo verdadeiramente livre.
No caso da
tecnologia, esta crítica ainda não se desenvolveu amplamente embora algum
trabalho tenha sido feito no processo do trabalho, das tecnologias reprodutivas
e no ambiente. A pesquisa parece mostrar que a moderna racionalidade tecnológica
exibe deficiências fundamentais ao lidar com o trabalho, o gênero e a
natureza. Estas deficiências relacionam-se sistematicamente com a natureza de
nossa ordem social. Determinam a maneira pela qual pensamos sobre ação técnica
e recursos do projeto técnico. Torna-se necessária, portanto, uma crítica
social dessas deficiências gerais.
É verdade que
este padrão muitas vezes é condenado a totalizar críticas da tecnologia como
tal. Habermas tem razão ao querer evitar a tecnofobia que às vezes se associa
a tal abordagem. No entanto, a crítica histórica de Marcuse (1964) identifica
um padrão semelhante sem julgar prematuramente a possibilidade de mudança
futura na estrutura da racionaldade tecnológica. Como vimos, baseia-se na
distinção quase heideggeriana entre tecnologia como redução a matérias
primas por interesse de controle e uma tecnologia com projeto diferente que
libertaria o potencial inerente de seus objetos em harmonia com as necessidades
humanas.
Tais problemas,
no entanto, não justificam voltar a uma abordagem essencialista que defina a
tecnologia abstraída de qualquer contexto socio-histórico. Nem tampouco tomar
como hipótese, à la Habermas, que haja um nível de racionalidade técnica
invariante a despeito de mudanças contextuais. Enquanto haja um certo núcleo
de atributos e funções que nos permite distinguir racionalidade técnica de
outras relações com a realidade, ele deseja extrair demais ¾ uma crítica social
completa ¾ de algumas poucas
propriedades abstratas que pertencem àquele núcleo. Sem dúvida é de se
incluir, como ele afirma, a relação objetivante orientada ao êxito
quanto à natureza ¾ mas precisa ser incorporada nas disciplinas técnicas que
incluem muito mais do que prover uma base para aplicação. É a racionalidade
de tais disciplinas que está em questão, já que esta é a forma institucional
concreta em que a razão se torna historicamente ativa.
Seria possível
desenvolver uma crítica da racionalidade técnica neste nível institucional ao
mesmo tempo em que se evitaria os pontos fracos da teoria de Marcuse? Creio que
isto pode ser feito por análise das propriedades reflexivas da prática técnica.
Esta abordagem pode captar algo da contribuição de Marcuse e, ao mesmo tempo,
esclarecer problemas da noção de racionalidade de Habermas.
Não há dúvidas
de que é surpreendente alegar que a tecnologia tenha propriedades reflexivas.
No entanto, se afirmamos seriamente que a tecnologia é essencialmente
social, então, como todas instituições sociais
deve caracterizar-se pela reflexibilidade. Que isto geralmente não seja
reconhecido deve-se à identificação da tecnologia em si com uma ideologia
especial e hostíl à reflexão. Heidegger o admite praticamente ao afirmar que
a essência da tecnologia não é nada tecnológico. Ellul também nos adverte
logo no início de sua obra maior: o “fenômeno técnico” não é tanto um
assunto de recursos mas do espírito como ocorre a sua apropriação. Mas, ao
final, estes pensadores e seus continuadores fracassam na tentativa de
desenvolver uma teoria da tecnologia independente. Parecem concluir que ¾ uma vez que a tecnologia
agasalha os males que identificaram com o positivismo, instrumentalismo, behaviorismo
e com o mecânico e todas as demais doutrinas que efetivamente criticam ¾, a crítica a qualquer
uma pode transferir-se a qualquer
outra. A esse respeito, Habermas não se diferencia muito dos que o precederam:
seu modelo de relação técnica com o mundo é positivismo e extrai
pressupostos daquela doutrina sobre a possibilidade de uma racionalidade neutra,
não-social. Identifica tal ideologia com a eterna essência da tecnologia.
É verdade que,
concebida abstratamente, a tecnologia guarda uma afinidade eletiva com o
positivismo, mas isto acontece precisamente porque cada elemento da
reflexibilidade foi deixado de lado ao retirar sua essência da história. A essência
da técnica em seu sentido mais amplo não é simplesmente aqueles aspectos
distintos e constantes que se identificam em construtos conceituais extra-históricos
como os de Habermas. Com certeza, tais
construtos podem às vezes trazer algum insight, mas apenas no que
chamaremos de “instrumentalização primária” que distingue a ação técnica
em geral. A técnica inclui aquelas características em combinações com variáveis
que se desenvolvem historicamente. Apenas algumas determinações compartilhadas
por todos os tipos de prática técnica não são uma essência anterior à história,
mas simplesmente abstrações das várias essências concretas historicamente
concreta em seus diferentes estágios de desenvolvimento, o que inclui o atual
estágio moderno delas.
As propriedades
reflexivas da técnica permitem que ela volte-se
para si mesma e para seus usuários como inserida em seu contexto social e
natural. Penso tais atributos como formas estéticas, organização de trabalhos
de equipe, investimentos vocacionais e várias propriedades relacionais de
artefatos técnicos. Chamo tais aspectos reflexivos da técnica de
“instrumentalizações secundárias”; sua configuração caracteriza eras
distintas na história da racionalidade técnica.[12]
A passagem do ofício para a produção industrial oferece um exemplo claro: a
produtividade rapidamente cresceu, uma mudança qualitativa de grande
significado no âmbito da instrumentalização primária, mas igualmente
importante, as instrumentalizações secundárias como o design do
produto, a administração e a vida de trabalho sofreram uma profunda transformação
qualitativa. Estas transformações não são apenas acréscimos numa pré-social
relação à natureza, mas são essenciais para a industrialização considerada
exatamente em seu aspecto técnico.
Esta posição
parece mais plausível em contraste com a de Habermas logo que alguém pergunta
o que ele realmente pensa por essência da tecnologia, isto é, a relação à
natureza, relação que é objetivante e orientada ao êxito. Existe substância
suficiente para tal definição que possa imaginá-la implementada? Será que não
é, de preferência, tão vazia de conteúdo que tolere uma ampla escala de
realizações, que inclui a noção de Marcuse de relacionar-se com a natureza
como a um outro sujeito? A não ser que, exemplifiquemos, que se fraude muitas
coisas no conteúdo histórico específico. Eis a única maneira de se ir do
conceito excessivamente geral de uma relação com a natureza orientada ao êxito
para chegar a uma afirmativa específica de que a tecnologia necessariamente
exclui respeito pela natureza no sentido que lhe dá Marcuse. Mas este movimento
reproduz o erro de que Habermas acusa Weber, a saber: de identificar a
racionalidade em geral com sua específica realização histórica.
A essência da
tecnologia pode ser apenas a soma de todas as determinações superiores que
exibe em seus vários estágios de desenvolvimento. Esta soma é suficientemente
rica e complexa para abranger numerosas possibilidades mediante trocas de ênfase
e exclusões. Pode-se tratar isto como uma estrutura de lógica formal bem da
maneira que Habermas trata os diferentes tipos de racionalização (cf. Tabela
I). As várias racionalidades técnicas que apareceram no curso de história
seriam cada uma caracterizada por um desvio formal que se associa à sua
configuração específica. Um relato crítico da moderna racionalidade técnica
poderia desenvolver-se nesta base com um ponto de vista para mudança
construtiva em vez de fuga romântica.
Tal abordagem
pode ser reconciliada com a ética do discurso? Sugere a necessidade de um tipo
de crítica desmistificadora que Habermas apoiava no livro de sua primeira fase
“Conhecimento e Interesse”. Lá ele estava mais disposto do que agora a
reconhecer a natureza política das distorções da comunicação sistemáticas
em nossa sociedade, o que torna a maioria dos diálogos vazios e inúteis. Na
mesma proporção que certa distribuição de força social encontra suas raízes
na racionalidade tecnologicamente dada, que por sua vez delimita o horizonte
inquestionável da discussão, nenhuma parte do debate pode causar muita diferença.
Mas como se pode subverter este horizonte? Qual tipo de crítica, baseada em vários
tipos de desafios práticos às formas cotidianas de opressão numa sociedade
tecnológica pode trazer alguma diferença? Duvido que a teoria da ação
comunicativa de Habermas possa ter todos os recursos necessários para responder
a tais questões, de tal modo ela se amarra a um conceito inadequado de
racionalidade técnica.[13]
VI – CONCLUSÃO
Neste ensaio,
apresentei os fundamentos de uma posição que soluciona os problemas mais
graves tanto em Marcuse quanto em Habermas. Vou resumi-la numa só sentença. A
tecnologia é um meio em que a coordenação-ação instrumental substitui a
compreensão comunicativa através de objetivos marcados pelo interesse.
Colocando de maneira simples: às vezes, a tecnologia é superdimensionada, às
vezes é carregada politicamente, às vezes, ambas as coisas acontecem.
Precisa-se de várias abordagens diferentes, dependendo do caso.
Essa posição não envolve nem o repúdio da ciência, nem uma metafísica,
ou um instrumentalismo e defesas de neutralidade. Resolve o que considero os
principais problemas nas teorias sobre a tecnologia feitas por Marcuse e
Habermas e oferece a base para uma crítica radical.
Muitos dos avanços
significativos de Habermas são
compatíveis com este alargamento da teoria dos meios de modo a incluir a
tecnologia. Em escritos recentes, já deu um passo signficativo na direção do
que descrevo como dois níveis de crítica da lei. Habermas (1994: 124)
distingue entre (a) as normas morais “puras” que descrevem “possíveis
interações entre o falar e o agir em geral” e (b) normas legais que se
“referem à rede de interações numa sociedade específica”. Como são a
expressão concreta de um povo num tempo e espaço particulares, as normas
ligam-se a uma concepção particular de vida boa, precisam incorporar valores
substantivos. Mas assim procedem de
maneira legalmente destacada, não de um jeito que venha a apagar a distinção
entre lei e política. Habermas (1994: 124) conclui: “Todo sistema legal é
também expressão de uma forma particular de vida e não apenas um reflexo do
conteúdo universal dos direitos fundamentais” Isto não é bem parecido com a
abordagem aqui defendida? Tenho argumentado que qualquer exemplificação dos
princípios técnicos é socialmente específica, justamente como Habermas
afirma da lei. Ambos estão abertos à crítica não apenas onde são aplicadas
de maneira inadequada, mas também em relação aos defeitos da forma de vida
que envolvem.
Nesse relato, não
basta amarrar o sistema; é
preciso também ser estratificado com
exigências que correspondem a uma concepção de vida boa publicamente
colocada. [14]
É meio obscuro saber como isto fica na teoria de Habermas original sobre
os meios por causa da falta de um conceito de desvio de implementação, mas
decorre diretamente da revisão da teoria que aqui se propõe. Onde o projeto
técnico é estratificado com exigência democráticas, divisa-se profundas
mudanças sociotécnicas. Precisamos de um método que possa apreciar tais situações,
mesmo que sejam poucas e distanciadas, mesmo se não pudermos predizer seu
conseqüente sucesso. Este ensaio tentou criar uma estrutura teórica para alcançar
justamente isto.
Pode-se indagar
porque o problema da tecnologia não foi antes tratado, neste termos ou em
similares, dado o desejo que tantos da tradição da Escola de Frankfurt tiveram
por uma ampliação do horizonte da crítica. Poderia ser que aquelas velhas
fronteiras disciplinares entre as humanidades e as ciências tenham determinado
as categorias fundamentais da teoria social? Se isto acontece, é hora de pôr
em cheque os efeitos de tais fronteiras em nosso campo pois essas estão
destinadas a serem violadas pela própria natureza de seu objeto.
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*
Publicada no Inquiry 39, 1996: pp. 45-70. Tradução de Newton
Ramos-de-Oliveira. O artigo foi baseado numa palestra dada no Centro TMV da
Universidade de Oslo e no Centro para Estudo das Ciências e Humanidades da
Universidade de Bergen. Além dessas sessões, o autor baseou-se também em
discussões com Torben Hviid Nielsen, Thomas Krogh, David Ingram e Gerald
Doppelt, a quem transmite seus agradecimentos.
**
Professor aposentado da Unesp e pesquisador do CNPq. E-mail: ramosoli@uol.com.br
[1]
Publicado em Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen
Habermas – Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Tradução de Zeljko Loparic e Andréa Maria Altino de Campos Loparic.
P. 313- 343.
[2]
O autor discute algumas questões correlatas na interpretação de
Habermas en Feenberg 1994.
[3]
ADORNO, Theodor W e HORKHEIMER,
M.- Dialética do Esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida, Rio de
Janeiro, Zahar editores, 1986;
[4]
MARCUSE, H. - A ideologia da sociedade
industrial: o homem unidimensional, Rio de Janeiro, Zahar editores,
1986.
[5]
Para um tratamento mais completo das posições de Marcuse, cf Feenberg
1987.
[6]
Esta tabela foi objeto de um interessante debate entre Habermas e Thomas
McCarthy. Cf. Bernstein (1985: pp. 177 e segs e 203 e segs). Habermas
confunde-se ao pedir desculpas por estar usando a tabela para demonstrar
suas próprias posições quando, na verdade, pretendia mostrar uma explicação
de Weber; mas, depois, continua a usá-la para apresentar suas próprias
opiniões. O debate continua inconcluso, pois, como mostrarei mais
detalhadamente abaixo, coloca a questão de uma relaçào normativa ao mundo
objetivo em termos da possibilidade de uma filosofia natural mais do que em
termos de uma razão técnica revista, Cf.. também
Thompson & Held (1982: pp. 238 e segs). Marcuse (1964: 166) também
não foi nada claro quanto ao que pretendia, mas, pelo menos, rejeitou
explicitamente uma regressão à “física qualitativa”.
[7]
No original : “ratio of inputs to outputs”. (nota nro)
[8]
Para uma discussão desta questão, cf McCarthy: 1991 e a resposta de
Habermas, Habermas:1996.
[9]
Esta objeção foi-me sugerida por Torben Hviid e Thomas Krogh.
[10]
Antes de deixar este ponto, faz-se talvez necessário anteciparmo-nos a um
possível erro de compreensão. Seria um equívoco identificar a tecnologia
(ou outro meio qualquer) com a instrumentalidade como tal. Se toda
instrumentalidade for identificada como tecnológica, não teremos base para
distinguir entre os vários meios. Além disso, não se pode distinguir o
amplo domínio da técnica em geral de sua forma tecnológica
especificamente moderna. De maneira especial, o artefato tradicional com sua
tecnologia pre-moderna e o que podemos chamar de técnicas pessoais,
precisam ser diferenciadas da tecnologia moderna, isto é, o trabalho manual
e as atividades comuns do mundo da vida realizados por indivíduos ou por
pequenos grupos com meios de pequena escala sob controle individual, como
opostos às atividades extraordinariamente complexas mediadas por recursos
semi-automáticos e sistemas sob algum tipo de controle administrativo. Não
resta dúvida de que a linha é nebulosa, mas esta diferenciação geral é
útil e nos permite julgar o grau de tecnificação do mundo da vida no
sentido que lhe dá Habermas. Isto fica claro no exemplo da amamentação
que não deixa de ter sua técnica., diferente na fórmula, mas igualmente
“orientada ao êxito”. Neste sentido, fórmulas ao bebê são tecnologia
e, como tal, mediações, ao contrário da amamentação pelo seio que é
uma técnica pessoal. Portanto, o domínio da ação técnica é mais amplo
do que o domínio dos meios.
[11]
Para um estudo desse conceito veja-se Feenberg 1991: capítulo 8.
[12]
Já outra perspectiva bem diferente é representada pelo livro de
Lorenzo Simpson “Tecnologia, tempo e conversas da modernidade”.
Simpson nega que esteja essencializando a tecnologia, no entanto, trabalha
em todo seu livro com um conjunto mínimo de características invariantes de
tecnologia como se constituissem uma “coisa” da qual pudesse falar
independente do contexto socio-histórico (Simpson, 1995: 15-16 e 182). Este
contexto é, então, mostrado como apenas um nível contingente de influências
e condições mais do que como integrados na concepção da própria
tecnologia.
[13]
Para uma interessante tentativa de defender a ética do discurso através do
alargamento de seu escopo de modo a incluir relações técnicas veja-se
Ingram 1995: capítulo 5.
[14]
Para o conceito de estratificação, cf. Feenberg 1995, especialmente o capítulo
9. b.